quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Sobre....


O FALSO VOLUNTARIADO

A 17 de julho último foi publicada a Lei n.º 55/2017 da Assembleia da República, que logo no seu 1.º artigo diz queaprofunda o regime jurídico da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (…) e alarga os mecanismos processuais de combate aos falsos «recibos verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado, (…).”
“A definição de contrato de trabalho consta do artigo11º do Código do Trabalho (CT), aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, e é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou a outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
Presume-se também a existência de um contrato de trabalho quando, nos termos do artigo 12º do CT, a atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado, que os equipamentos e instrumentos de trabalho pertençam ao beneficiário da atividade, o prestador da atividade tenha o horário dessa prestação determinado pelo beneficiário da mesma, que a quantia paga ao prestador da atividade seja certa e periódica e ainda que o prestador da atividade desempenhe funções de direção ou de chefia na estrutura orgânica da empresa.”([i]).
“O termo “recibo verde” é uma denominação comum e genérica para falar de trabalhadores independentes. Por outras palavras, são trabalhadores que não têm uma hierarquia formal devendo ter autonomia para desempenhar o serviço que lhes foi contratado. Colaboram com a empresa, mas não são seus empregados, pelo menos no que diz respeito à conceção jurídica do termo. (…) O trabalhador a recibos verdes deverá gozar de autonomia para o exercício das funções que lhe foram contratados, tendo de garantir os resultados e o sucesso do serviço que lhe foi prestado. Na realidade, a entidade que contratou o serviço não tem o poder de direção ou mesmo o poder disciplinar sobre o prestador de serviço. Só lhe interessaria o resultado, desde que cumpridas algumas regras contratuais definidas previamente.” ([ii]).
“O estágio é a prática profissional que realiza um estudante para pôr em prática os seus conhecimentos e as suas competências. O estagiário é o aprendiz que leva a cabo esta prática com a intenção de obter experiência de campo, ao passo que quem se encarrega de o orientar e formar é o tutor. O objetivo do estágio, por conseguinte, é proporcionar experiência laboral ao estagiário e prepará-lo para que se possa desenvolver no sector de atividade associado à sua futura profissão (…)”. ([iii])
“Voluntariado é o conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas (leia-se: sem finalidade lucrativa (…). Não são abrangidas pela presente lei (leia-se: não são voluntariado) as atuações que embora desinteressadas, tenham um carácter isolado e esporádico ou sejam determinadas por razões familiares, de amizade e de boa vizinhança.
O voluntário é o indivíduo que de forma livre, desinteressada e responsável se compromete, de
acordo com as suas aptidões próprias e no seu tempo livre, a realizar ações de voluntariado no âmbito de uma organização promotora (…). A qualidade de voluntário não pode, de qualquer forma, decorrer de relação de trabalho subordinado ou autónomo ou de qualquer relação de conteúdo patrimonial com a organização promotora, sem prejuízo de regimes especiais constantes da lei.
São “organizações promotoras as entidades públicas da administração central, regional ou local ou outras pessoas coletivas de direito público ou privado, legalmente constituídas, que reúnam condições para integrar voluntários e coordenar o exercício da sua atividade (…). Poderão igualmente aderir ao regime estabelecido no presente diploma, como organizações promotoras, outras organizações socialmente reconhecidas que reúnam condições para integrar voluntários e coordenar o exercício da sua atividade. (…) A atividade referida nos números anteriores tem de revestir interesse social e comunitário e pode ser desenvolvida nos domínios cívico, da ação social, da saúde, da educação, da ciência e cultura, da defesa do património e do ambiente, da defesa do consumidor, da cooperação para o desenvolvimento, do emprego e da formação profissional, da reinserção social, da proteção civil, do desenvolvimento da vida associativa e da economia social, da promoção do voluntariado e da solidariedade social, ou em outros de natureza análoga.” ([iv])
Ora, trabalho é trabalho e voluntariado é voluntariado. Como o azeite e a água, também trabalho e voluntariado, são realidades não miscíveis. O trabalho é regulado por contrato ou forma análoga. O voluntariado é regulado por um “programa de voluntariado” ([v]). O legislador denominou o voluntariado de “trabalho voluntário” ([vi])? Devia tê-lo feito? Não. Mas fê-lo, está feito e agora entenda-se que voluntariado não é trabalho. É, isso sim, “conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas”([vii]). Passados tantos anos, não há, nem hoje nem ontem, razão para se chamar bugalhos a alhos. Definitivamente: trabalho é uma coisa e voluntariado é outra coisa. A contínua confusão de termos e conceitos leva a que hoje se continue a colocar no mesmo prato da balança, trabalho, estágios e voluntariado, e se considere a existência de falso voluntariado.
As relações laborais, reguladas por contrato ou por recibo verde; e os estágios, existem em todos os setores de atividade. Sejam eles, públicos, privados lucrativos ou privados não lucrativos. A relação de colaboração – voluntariado, regulada por programa de voluntariado, só existe no Estado e no setor não lucrativo. Na economia social.
A Lei n.º 55/2017 vem alargar “(…) os mecanismos processuais de combate aos falsos «recibos
verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado” … podendo-se intuir que apresenta o “falso voluntariado” como uma forma de “trabalho não declarado” a par das outras que refere… então, para o legislador, o voluntariado continua a ser trabalho; e é falso quando não é declarado. E repito: e seja ou não seja assim… isto passa-se no Estado e nas Organizações da Sociedade Civil, sem finalidade lucrativa.
E mais. E se o voluntariado não é declarado é porque não se encontra organizado e estruturado conforme legislação em vigor para o setor. E ainda. Se não é declarado, o que se diz ser voluntariado, não o é. Só há e só é voluntariado o que se encontrar conforme a legislação. Tudo o mais pode ser tudo o que se quiser concetualizar… mas não é voluntariado. A não ser que queiramos continuar a tapar o sol com a peneira ou a não pegar os assuntos por onde devem ser pegados.
Não é necessário ser-se inteligente e letrado para se perceber das muitas irregularidades de presença de cidadãos a colaborarem em entidades não lucrativas, de modo completamente desregulado, diria mesmo, à Lagardere. Não tem que à partida, haver má intenção! Mas a verdade é que as situações, de uma passam a mil e a milhares; e podem revelar completo desvirtuamento  das regras, das orientações e dos objetivos de projetos e programas. E às tantas, de irregularidade passam a regularidade. E todos passamos a viver bem com as situações. E isto acontece no Estado e na economia social. E quanto maior é a Organização, maior é o risco de tal acontecer.
E se a presença e desempenho de alguma função por parte de alguma pessoa singular em alguma empresa ou Organização, não se encontra regulada por contrato, programa ou documento similar… então está-se perante uma ilegalidade. Quem tem a missão de fiscalizar que fiscalize. Quem tem a missão de atuar que atue. Também no que concerne ao voluntariado, esse papel encontra-se acometido à ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.
Tenho por certo que a melhor prática da organização e da estruturação do voluntariado, harmonizado com a legislação e com o saber e o querer de bem servir os beneficiários, vivenciando as melhores atuações e parcerias… se encontra no setor da saúde. Mais propriamente na parte que integra as chamadas Ligas dos Amigos e Associações de Voluntariado e Voluntários afetas às Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde, das Organizações de apoio e de defesa de Doentes e Utentes; e das Organizações dos Dadores de Sangue; sem desprimor, claro, de outras e também excelentes formas de organização de cidadãos que vão surgindo por esse país além e que revelam a vontade e a determinação da prática da solidariedade e do exercício ativo da cidadania.
Termino apelando ao setor protagonizado pela Federação Nacional do Voluntariado em Saúde e suas associadas que trabalhem incessantemente no sentido do melhor serviço aos beneficiários. Sim. Mas que caminhem também no sentido da procura da melhor organização e estruturação dos seus projetos e programas de voluntariado.
Que continuem a ser os melhores exemplos a seguir e a ter as melhores práticas, da solidariedade e da organização. A bondade, o amor, o carinho, a compaixão e a misericórdia de quantos servem os outros, são posturas e marcas demasiado importantes e altas para sofrerem interferências externas que as prejudiquem. Não deixemos que isso aconteça. Que o bem se faça. Bem e em bem.
Porto, 16 de agosto de 2017 João António Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde
NOTA: Declaro que o conteúdo do presente blogue é da minha inteira responsabilidade e em nenhuma circunstância implica o coletivo a que presido.


[i] http://www.gddc.pt/CPLP/TRABALHOdefinicao.html
[ii] https://reorganiza.pt/o-que-sao-recibos-verdes/
[iii] http://conceito.de/estagio
[iv] http://www.voluntariado.pt/left.asp?02.02.01.01
[v] Lei 71/98, artigo 7.º, n.º 1, alínea g
[vi] Idem
[vii] Lei 71/98, artigo 2.º, n.º 1

Sem comentários:

Enviar um comentário