O FALSO VOLUNTARIADO
A 17 de julho último foi publicada a Lei n.º 55/2017 da
Assembleia da República, que logo no seu 1.º artigo diz que “aprofunda o regime
jurídico da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de
trabalho (…) e alarga os mecanismos processuais de combate aos falsos «recibos
verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos
estágios e falso voluntariado, (…).”
“A definição de
contrato de trabalho consta do artigo11º do Código do Trabalho (CT), aprovado
pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, e
é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a
prestar a sua atividade a outra ou a outras pessoas, no âmbito de organização e
sob a autoridade destas.
Presume-se também a
existência de um contrato de trabalho quando, nos termos do artigo 12º do CT, a
atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele
determinado, que os equipamentos e instrumentos de trabalho pertençam ao
beneficiário da atividade, o prestador da atividade tenha o horário dessa
prestação determinado pelo beneficiário da mesma, que a quantia paga ao
prestador da atividade seja certa e periódica e ainda que o prestador da atividade
desempenhe funções de direção ou de chefia na estrutura orgânica da empresa.”([i]).
“O termo “recibo verde”
é uma denominação comum e genérica para falar de trabalhadores independentes.
Por outras palavras, são trabalhadores que não têm uma hierarquia formal
devendo ter autonomia para desempenhar o serviço que lhes foi contratado.
Colaboram com a empresa, mas não são seus empregados, pelo menos no que diz
respeito à conceção jurídica do termo. (…) O trabalhador a recibos verdes
deverá gozar de autonomia para o exercício das funções que lhe foram
contratados, tendo de garantir os resultados e o sucesso do serviço que lhe foi
prestado. Na realidade, a entidade que contratou o serviço não tem o poder de
direção ou mesmo o poder disciplinar sobre o prestador de serviço. Só lhe
interessaria o resultado, desde que cumpridas algumas regras contratuais
definidas previamente.” ([ii]).
“O estágio é a
prática profissional que realiza um estudante para pôr em prática os seus
conhecimentos e as suas competências. O estagiário é o aprendiz que leva a cabo
esta prática com a intenção de obter experiência de campo, ao passo que quem se
encarrega de o orientar e formar é o tutor. O objetivo do estágio, por
conseguinte, é proporcionar experiência laboral ao estagiário e prepará-lo para
que se possa desenvolver no sector de atividade associado à sua futura
profissão (…)”. ([iii])
“Voluntariado é o
conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma
desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de
intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos
sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas (leia-se: sem finalidade
lucrativa (…). Não são abrangidas pela presente lei (leia-se: não são
voluntariado) as atuações que embora desinteressadas, tenham um carácter isolado
e esporádico ou sejam determinadas por razões familiares, de amizade e de boa
vizinhança.
O voluntário é o
indivíduo que de forma livre, desinteressada e responsável se compromete, de
acordo com as suas aptidões próprias e no seu tempo livre, a realizar ações de
voluntariado no âmbito de uma organização promotora (…). A qualidade de
voluntário não pode, de qualquer forma, decorrer de relação de trabalho
subordinado ou autónomo ou de qualquer relação de conteúdo patrimonial com a
organização promotora, sem prejuízo de regimes especiais constantes da lei.
São “organizações
promotoras as entidades públicas da administração central, regional ou local ou
outras pessoas coletivas de direito público ou privado, legalmente
constituídas, que reúnam condições para integrar voluntários e coordenar o
exercício da sua atividade (…). Poderão igualmente aderir ao regime
estabelecido no presente diploma, como organizações promotoras, outras
organizações socialmente reconhecidas que reúnam condições para integrar
voluntários e coordenar o exercício da sua atividade. (…) A atividade referida
nos números anteriores tem de revestir interesse social e comunitário e pode
ser desenvolvida nos domínios cívico, da ação social, da saúde, da educação, da
ciência e cultura, da defesa do património e do ambiente, da defesa do
consumidor, da cooperação para o desenvolvimento, do emprego e da formação
profissional, da reinserção social, da proteção civil, do desenvolvimento da
vida associativa e da economia social, da promoção do voluntariado e da
solidariedade social, ou em outros de natureza análoga.” ([iv])
Ora, trabalho é trabalho e voluntariado é voluntariado.
Como o azeite e a água, também trabalho e voluntariado, são realidades não
miscíveis. O trabalho é regulado por contrato ou forma análoga. O voluntariado
é regulado por um “programa de
voluntariado” ([v]).
O legislador denominou o voluntariado de “trabalho
voluntário” ([vi])?
Devia tê-lo feito? Não. Mas fê-lo, está feito e agora entenda-se que
voluntariado não é trabalho. É, isso sim, “conjunto
de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada
por pessoas”([vii]).
Passados tantos anos, não há, nem hoje nem ontem, razão para se chamar bugalhos
a alhos. Definitivamente: trabalho é uma coisa e voluntariado é outra coisa. A
contínua confusão de termos e conceitos leva a que hoje se continue a colocar
no mesmo prato da balança, trabalho, estágios e voluntariado, e se considere a existência
de falso voluntariado.
As relações laborais, reguladas por contrato ou por
recibo verde; e os estágios, existem em todos os setores de atividade. Sejam
eles, públicos, privados lucrativos ou privados não lucrativos. A relação de
colaboração – voluntariado, regulada por programa de voluntariado, só existe no
Estado e no setor não lucrativo. Na economia social.
A Lei n.º 55/2017 vem alargar “(…) os mecanismos processuais de combate aos falsos «recibos
verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado” … podendo-se intuir que apresenta o “falso voluntariado” como uma forma de “trabalho não declarado” a par das outras que refere… então, para o legislador, o voluntariado continua a ser trabalho; e é falso quando não é declarado. E repito: e seja ou não seja assim… isto passa-se no Estado e nas Organizações da Sociedade Civil, sem finalidade lucrativa.
verdes» e a todas as formas de trabalho não declarado, incluindo falsos estágios e falso voluntariado” … podendo-se intuir que apresenta o “falso voluntariado” como uma forma de “trabalho não declarado” a par das outras que refere… então, para o legislador, o voluntariado continua a ser trabalho; e é falso quando não é declarado. E repito: e seja ou não seja assim… isto passa-se no Estado e nas Organizações da Sociedade Civil, sem finalidade lucrativa.
E mais. E se o voluntariado não é declarado é porque não
se encontra organizado e estruturado conforme legislação em vigor para o setor.
E ainda. Se não é declarado, o que se diz ser voluntariado, não o é. Só há e só
é voluntariado o que se encontrar conforme a legislação. Tudo o mais pode ser
tudo o que se quiser concetualizar… mas não é voluntariado. A não ser que queiramos
continuar a tapar o sol com a peneira ou a não pegar os assuntos por onde devem ser
pegados.
Não é necessário ser-se inteligente e letrado para se perceber das muitas irregularidades de presença de cidadãos a colaborarem em entidades não lucrativas, de modo completamente desregulado, diria mesmo, à Lagardere. Não tem que à partida, haver má intenção! Mas a verdade é que as situações, de uma passam a mil e a milhares; e podem revelar completo desvirtuamento das regras, das orientações e dos objetivos de projetos e programas. E às tantas, de irregularidade passam a regularidade. E todos passamos a viver bem com as situações. E isto acontece no Estado e na economia social. E quanto maior é a Organização, maior é o risco de tal acontecer.
Não é necessário ser-se inteligente e letrado para se perceber das muitas irregularidades de presença de cidadãos a colaborarem em entidades não lucrativas, de modo completamente desregulado, diria mesmo, à Lagardere. Não tem que à partida, haver má intenção! Mas a verdade é que as situações, de uma passam a mil e a milhares; e podem revelar completo desvirtuamento das regras, das orientações e dos objetivos de projetos e programas. E às tantas, de irregularidade passam a regularidade. E todos passamos a viver bem com as situações. E isto acontece no Estado e na economia social. E quanto maior é a Organização, maior é o risco de tal acontecer.
E se a presença e desempenho de alguma função por parte
de alguma pessoa singular em alguma empresa ou Organização, não se encontra
regulada por contrato, programa ou documento similar… então está-se perante uma
ilegalidade. Quem tem a missão de fiscalizar que fiscalize. Quem tem a missão
de atuar que atue. Também no que concerne ao voluntariado, esse papel
encontra-se acometido à ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.
Tenho por certo que a melhor prática da organização e da
estruturação do voluntariado, harmonizado com a legislação e com o saber e o
querer de bem servir os beneficiários, vivenciando as melhores atuações e
parcerias… se encontra no setor da saúde. Mais propriamente na parte que
integra as chamadas Ligas dos Amigos e Associações de Voluntariado e Voluntários
afetas às Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde, das Organizações de
apoio e de defesa de Doentes e Utentes; e das Organizações dos Dadores de
Sangue; sem desprimor, claro, de outras e também excelentes formas de organização
de cidadãos que vão surgindo por esse país além e que revelam a vontade e a
determinação da prática da solidariedade e do exercício ativo da cidadania.
Termino apelando ao setor protagonizado pela Federação
Nacional do Voluntariado em Saúde e suas associadas que trabalhem
incessantemente no sentido do melhor serviço aos beneficiários. Sim. Mas que
caminhem também no sentido da procura da melhor organização e estruturação dos
seus projetos e programas de voluntariado.
Que continuem a ser os melhores exemplos a seguir e a ter
as melhores práticas, da solidariedade e da organização. A bondade, o amor, o
carinho, a compaixão e a misericórdia de quantos servem os outros, são posturas
e marcas demasiado importantes e altas para sofrerem interferências externas
que as prejudiquem. Não deixemos que isso aconteça. Que o bem se faça. Bem e em
bem.
Porto, 16 de agosto de 2017 João António Pereira, presidente da Direção da Federação
Nacional de Voluntariado em Saúde
NOTA: Declaro que o conteúdo do presente blogue é da minha inteira responsabilidade e em nenhuma circunstância implica o coletivo a que presido.
NOTA: Declaro que o conteúdo do presente blogue é da minha inteira responsabilidade e em nenhuma circunstância implica o coletivo a que presido.
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