quinta-feira, 24 de agosto de 2017

O Voluntariado...

… E A DÁDIVA DE SANGUE
O Voluntariado: - Em Portugal é reconhecido “o valor social do voluntariado como expressão do livre exercício de uma cidadania ativa e solidária” ([i]). Nessa base o próprio Estado chamou a si o papel de promotor e de garante da sua autonomia e pluralismo, bem como “da participação solidária dos cidadãos em ações de voluntariado”([ii]); e definiu as bases do seu enquadramento jurídico com a Lei 71/98.
O “voluntariado é o conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade desenvolvidos sem fins lucrativos (…)” ([iii]).

E não é voluntariado “atuações que, embora desinteressadas, tenham um carácter isolado e esporádico ou sejam determinadas por razões familiares, de amizade e de boa vizinhança.” ([iv]). E não há voluntariado free-lancer, como algum partido político advogou algum dia.
Os princípios que enquadram o voluntariado em Portugal, são sete: “solidariedade, participação, cooperação, complementaridade, gratuidade, responsabilidade e convergência.” ([v])
Solidariedade – Todos e cada um de nós, somos responsáveis por nós e pelos outros. Eu por ti. Tu por mim. E nós por todos. Todos temos o dever de prover ao outro, aos outros. Como os três moscãoteiros: todos por um e um por todos.
Participação – As Organizações que representam o voluntariado e os voluntários têm que intervir, têm que falar, têm que ser escutadas no que a eles e ao voluntariado diz respeito. E há tanta necessidade do verdadeiro exercício desse papel de representante e de defesa, com mais acuidade ainda, dos voluntários. Estarão os voluntários a ser respeitados? Estará a lei a ser cumprida?
Cooperação – A cooperação entre as Organizações Promotoras e as Representativas, não tem que só ser possível. É urgente que aconteça. É um imperativo. Mas não em ambiente paternalista ou caridoso, no sentido que não se quer para o termo. Sim, em ambiente de igualdade e respeito pela autonomia de cada uma.
Complementaridade – Sim, a complementaridade. A tão apregoada complementaridade que não raras vezes não é praticada. Há. É verdade que há inúmeras situações de uso da mão de obra gratuita dos voluntários. E isto não acontece no setor lucrativo. Acontece na economia social e no setor público. Mesmo na saúde. Atenção aos dois tipos de voluntariado: o de administração e gestão; e o de ação direta!
Gratuidade – Os voluntários não recebem salários. Não são remunerados pela atividade que realizam. E claramente têm que ser muito fortes, porque também não podem receber donativos nem outras contrapartidas. E sabemos tão bem o assédio neste sentido, que é feito por exemplo a voluntários da saúde. E as horas da prestação do voluntariado, transformadas em valores que permitem abatimento em sede de IRS?
Responsabilidade – Se enquanto cidadãos, todos somos responsáveis por todos, enquanto no exercício do voluntariado, todos somos responsáveis pelo que realizamos, considerando não só a necessidade de que o que fazemos fazermos bem feito, como relativamente à satisfação do compromisso assumido, o que fazemos tem que ser resposta adequada às expectativas criadas aos beneficiários, pessoas e instituições.
Convergência – A ação dos voluntários e eles mesmos, têm que ser adequados aos objetivos e à cultura das Entidades Promotoras de Voluntariado e de Enquadramento dos Voluntários. Daí a importância da realização de um bom processo de recrutamento, seleção, formação, integração, acompanhamento e certificação. No entanto, no melhor pano pode cair a nódoa. Convergência, aqui, não é submissão cega a ordens hierárquicas. É acatamento de orientações e recomendações de quem compete dar, no sentido da prestação do melhor serviço e da satisfação de todos os stake-holders (intervenientes) – pessoas e instituições.

A dádiva de sangue: - Conforme o Estatuto do Dador de Sangue ([vi]) o Estado, se por um lado chama a si a responsabilidade em “assegurar a todos os cidadãos o acesso à utilização terapêutica do sangue, (…) bem como garantir os meios necessários à sua correta obtenção, preparação, conservação, fracionamento, distribuição e utilização.” ([vii]), por outro lado  diz que “é dever cívico de todo o cidadão saudável contribuir para a satisfação das necessidades de sangue da comunidade, nomeadamente através da dádiva.” ([viii]) e que é proibida a comercialização do sangue.
Ou seja, em Portugal, as responsabilidades relativas ao sangue humano, estão repartidas entre o Estado e os cidadãos; e todo o sangue é obtido a partir de dádiva dos cidadãos. O que quer dizer que em Portugal, o sangue humano não se compra nem se vende. Doa-se. Dá-se e recebe-se.
Depois, mais à frente no mesmo Estatuto, diz-se que a forma da dádiva é voluntária, que o dador declara a sua vontade em doar, e que “a dádiva de sangue é um ato cívico, voluntário, benévolo e não remunerado.” ([ix]).
Voluntariado e Dádiva de Sangue: - A atividade de voluntariado e a ação de doação de sangue humano, são ambas, ações de exercício da cidadania ativa, em prol do semelhante e em prol da comunidade, de todos os outros.
Para o voluntariado e para a doação de sangue, o Estado reconhece o papel insubstituível e crucial dos cidadãos, ambos como dadores, uns do seu próprio sangue e outros desempenhando diferentes tarefas de ajuda. Ambas as doações, realizam-se a partir da vontade de quem dá e voluntariamente.

O Estado, nas duas situações chama a si certas responsabilidades: a do enquadramento jurídico, a da promoção, a da regulação e a da garantia do exercício e do acesso.
Por ventura existirão diferenças na prática efetiva do Estado, relativamente aos dois setores, que me parecem menos devidas a ele mesmo e mais devidas à qualidade e à maior ou menor capacidade de representação, defesa e reivindicação da parte da sociedade civil, nomeadamente ao nível das Associações e das Federações.
Em cada uma das nossas associações e federações, há realidades diferentes, há forças que se jogam de modo diferente, há histórias diferentes, há caminhadas diferentes…. e até o modo de doar, de se doar, é diferente. Se uma doação está à flor da pele, a outra é invasiva. Se ambas partem de nós, uma sai clara e profundamente de nós.
Conclusão: - O dever de cidadania move-nos no sentido do voluntariado e da dádiva de sangue. Mas o dever da vida, de viver, de defender e de dar a vida, é muito mais forte; e confunde-se com o mais profundo do nosso ser – ser pessoa e ser humanidade. Está em nós e somos nós. Nós somos vida. Nós somos a vida. Vida que não se esconde debaixo do alqueire, que não é inerte nem passiva, mas vida que é ativa, que é dinâmica e em constante movimento. Vida que é pessoal – individual, mas que também é social e comunitária.
E só assim é que faz sentido. Se não fizer sentido para muitas pessoas, faz sentido, pelo menos para nós. Nós que atuamos e somos pró-vida. Nós que a portamos e a partilhamos com os outros, não importando a “ascendência, o sexo, a raça, a língua, o território de origem, a religião, as convicções políticas ou ideológicas, a instrução, a situação económica ou a condição social.” ([x]).

Todos, nós e todos, somos sujeitos da mesma dignidade social e somos iguais perante a Lei. E essa dignidade que não é só face à Lei e que é tanto mais elevada quanto mais nos sentimos para além de nós, que pode ser na transcendência.
É este sentido do outro. Este sentido de que não estamos sós, que não somos independentes, mas interdependentes, nem à face do planeta nem no cosmos ou nos céus, que nos faz, nos move, nos atira para a ajuda e para o serviço disponível, gratuito, desinteressado e qualificado, que prestamos.
Seja no voluntariado seja na dádiva do sangue. O voluntário e o dador de sangue, são sem sombra de dúvida, grandes obreiros da solidariedade verdadeira, autêntica e eficaz. Se quiserem, são obreiros da caridade – também ele sentimento altruísta de ajuda a alguém, sem busca de recompensa, que também pode definir-se como amor ao próximo, benevolência, bom coração, compaixão e misericórdia ([xi]).

Afinal, voluntários ou dadores, somos todos vida da mesma vida e sangue do mesmo sangue. Bebemos todos das mesmas fontes e deixamos transbordar os mesmos cálices. Ser voluntário é ser dador. Ser dador é ser voluntário. A essência é a mesma. Naturalmente que o que varia é a forma, o modo como…..
Somos voluntários. Somos dadores. Somos solidários.
Guimarães, 22 de julho de 2017. João António Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde. Nota: Declaro que o conteúdo deste blogue, é da inteira responsabilidade do autor; e em nada implica o coletivo a que preside.

[i] Artigo 5.º da Lei 71/98
[ii] Artigo 1.º da Lei 71/98
[iii] Número 1 do Artigo 2.º da Lei 71/98
[iv] Número 2 do Artigo 2.º do Lei 71/98
[v] Número 1 do Artigo 6.º da Lei 71/98
[vi] Lei 37/2012
[vii] Número 1 do Artigo 2.º da Lei 37/2012
[viii] Número 2 da Lei 37/2012
[ix] Número 1 do Artigo 4.º da Lei 37/2012
[x] Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, de 12 de dezembro de 2001.
[xi] Vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caridade

Sem comentários:

Enviar um comentário