… E A DÁDIVA DE SANGUE
O Voluntariado: - Em Portugal é reconhecido “o valor social do voluntariado como
expressão do livre exercício de uma cidadania ativa e solidária” ([i]). Nessa
base o próprio Estado chamou a si o papel de promotor e de garante da sua
autonomia e pluralismo, bem como “da
participação solidária dos cidadãos em ações de voluntariado”([ii]); e
definiu as bases do seu enquadramento jurídico com a Lei 71/98.
O “voluntariado é o
conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma
desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de
intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade
desenvolvidos sem fins lucrativos (…)” ([iii]).
E não é voluntariado “atuações
que, embora desinteressadas, tenham um carácter isolado e esporádico ou sejam
determinadas por razões familiares, de amizade e de boa vizinhança.” ([iv]). E não
há voluntariado free-lancer, como algum partido político advogou algum dia.
Os princípios que enquadram o voluntariado em Portugal,
são sete: “solidariedade, participação,
cooperação, complementaridade, gratuidade, responsabilidade e convergência.”
([v])
Solidariedade – Todos e cada um de nós, somos responsáveis por nós e
pelos outros. Eu por ti. Tu por mim. E nós por todos. Todos temos o dever de
prover ao outro, aos outros. Como os três moscãoteiros: todos por um e um por
todos.
Participação – As Organizações que representam o voluntariado e os
voluntários têm que intervir, têm que falar, têm que ser escutadas no que a
eles e ao voluntariado diz respeito. E há tanta necessidade do verdadeiro exercício
desse papel de representante e de defesa, com mais acuidade ainda, dos
voluntários. Estarão os voluntários a ser respeitados? Estará a lei a ser
cumprida?
Cooperação – A cooperação entre as Organizações Promotoras e as
Representativas, não tem que só ser possível. É urgente que aconteça. É um
imperativo. Mas não em ambiente paternalista ou caridoso, no sentido que não se
quer para o termo. Sim, em ambiente de igualdade e respeito pela autonomia de
cada uma.
Complementaridade – Sim, a complementaridade. A tão apregoada
complementaridade que não raras vezes não é praticada. Há. É verdade que há
inúmeras situações de uso da mão de obra gratuita dos voluntários. E isto não
acontece no setor lucrativo. Acontece na economia social e no setor público.
Mesmo na saúde. Atenção aos dois tipos de voluntariado: o de administração e
gestão; e o de ação direta!
Gratuidade – Os voluntários não recebem salários. Não são
remunerados pela atividade que realizam. E claramente têm que ser muito fortes,
porque também não podem receber donativos nem outras contrapartidas. E sabemos
tão bem o assédio neste sentido, que é feito por exemplo a voluntários da
saúde. E as horas da prestação do voluntariado, transformadas em valores que
permitem abatimento em sede de IRS?
Responsabilidade – Se enquanto cidadãos, todos somos responsáveis por
todos, enquanto no exercício do voluntariado, todos somos responsáveis pelo que
realizamos, considerando não só a necessidade de que o que fazemos fazermos bem
feito, como relativamente à satisfação do compromisso assumido, o que fazemos
tem que ser resposta adequada às expectativas criadas aos beneficiários,
pessoas e instituições.
Convergência – A ação dos voluntários e eles mesmos, têm que ser
adequados aos objetivos e à cultura das Entidades Promotoras de Voluntariado e
de Enquadramento dos Voluntários. Daí a importância da realização de um bom
processo de recrutamento, seleção, formação, integração, acompanhamento e
certificação. No entanto, no melhor pano pode cair a nódoa. Convergência, aqui,
não é submissão cega a ordens hierárquicas. É acatamento de orientações e
recomendações de quem compete dar, no sentido da prestação do melhor serviço e
da satisfação de todos os stake-holders (intervenientes) – pessoas e instituições.
Ou seja, em Portugal, as responsabilidades relativas ao
sangue humano, estão repartidas entre o Estado e os cidadãos; e todo o sangue é
obtido a partir de dádiva dos cidadãos. O que quer dizer que em Portugal, o
sangue humano não se compra nem se vende. Doa-se. Dá-se e recebe-se.
Depois, mais à frente no mesmo Estatuto, diz-se que a
forma da dádiva é voluntária, que o dador declara a sua vontade em doar, e que “a dádiva de sangue é um ato cívico,
voluntário, benévolo e não remunerado.” ([ix]).
Voluntariado e Dádiva de Sangue: - A atividade de
voluntariado e a ação de doação de sangue humano, são ambas, ações de exercício
da cidadania ativa, em prol do semelhante e em prol da comunidade, de todos os
outros.
Para o voluntariado e para a doação de sangue, o Estado
reconhece o papel insubstituível e crucial dos cidadãos, ambos como dadores,
uns do seu próprio sangue e outros desempenhando diferentes tarefas de ajuda.
Ambas as doações, realizam-se a partir da vontade de quem dá e voluntariamente.
O Estado, nas duas situações chama a si certas
responsabilidades: a do enquadramento jurídico, a da promoção, a da regulação e
a da garantia do exercício e do acesso.
Por ventura existirão diferenças na prática efetiva do
Estado, relativamente aos dois setores, que me parecem menos devidas a ele
mesmo e mais devidas à qualidade e à maior ou menor capacidade de
representação, defesa e reivindicação da parte da sociedade civil, nomeadamente
ao nível das Associações e das Federações.
Em cada uma das nossas associações e federações, há
realidades diferentes, há forças que se jogam de modo diferente, há histórias
diferentes, há caminhadas diferentes…. e até o modo de doar, de se doar, é
diferente. Se uma doação está à flor da pele, a outra é invasiva. Se ambas
partem de nós, uma sai clara e profundamente de nós.
Conclusão: - O dever de cidadania move-nos no sentido do
voluntariado e da dádiva de sangue. Mas o dever da vida, de viver, de defender
e de dar a vida, é muito mais forte; e confunde-se com o mais profundo do nosso
ser – ser pessoa e ser humanidade. Está em nós e somos nós. Nós somos vida. Nós
somos a vida. Vida que não se esconde debaixo do alqueire, que não é inerte nem
passiva, mas vida que é ativa, que é dinâmica e em constante movimento. Vida
que é pessoal – individual, mas que também é social e comunitária.
E só assim é que faz sentido. Se não fizer sentido para
muitas pessoas, faz sentido, pelo menos para nós. Nós que atuamos e somos
pró-vida. Nós que a portamos e a partilhamos com os outros, não importando a “ascendência, o sexo, a raça, a língua, o
território de origem, a religião, as convicções políticas ou ideológicas, a
instrução, a situação económica ou a condição social.” ([x]).
Todos, nós e todos, somos sujeitos da mesma dignidade
social e somos iguais perante a Lei. E essa dignidade que não é só face à Lei e
que é tanto mais elevada quanto mais nos sentimos para além de nós, que pode
ser na transcendência.
É este sentido do outro. Este sentido de que não estamos
sós, que não somos independentes, mas interdependentes, nem à face do planeta
nem no cosmos ou nos céus, que nos faz, nos move, nos atira para a ajuda e para
o serviço disponível, gratuito, desinteressado e qualificado, que prestamos.
Seja no voluntariado seja na dádiva do sangue. O
voluntário e o dador de sangue, são sem sombra de dúvida, grandes obreiros da
solidariedade verdadeira, autêntica e eficaz. Se quiserem, são obreiros da
caridade – também ele sentimento altruísta de ajuda a alguém, sem busca de
recompensa, que também pode definir-se como amor ao próximo, benevolência, bom
coração, compaixão e misericórdia ([xi]).
Afinal, voluntários ou dadores, somos todos vida da mesma
vida e sangue do mesmo sangue. Bebemos todos das mesmas fontes e deixamos
transbordar os mesmos cálices. Ser voluntário é ser dador. Ser dador é ser
voluntário. A essência é a mesma. Naturalmente que o que varia é a forma, o
modo como…..
Somos voluntários. Somos dadores. Somos solidários.
Guimarães, 22 de julho de 2017. João António Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde. Nota: Declaro que o conteúdo deste blogue, é da inteira responsabilidade do autor; e em nada implica o coletivo a que preside.
[i] Artigo
5.º da Lei 71/98
[ii] Artigo
1.º da Lei 71/98
[iii] Número
1 do Artigo 2.º da Lei 71/98
[iv] Número
2 do Artigo 2.º do Lei 71/98
[v] Número 1
do Artigo 6.º da Lei 71/98
[vi] Lei
37/2012
[vii] Número
1 do Artigo 2.º da Lei 37/2012
[viii] Número
2 da Lei 37/2012
[ix] Número
1 do Artigo 4.º da Lei 37/2012
[x] Artigo
13.º da Constituição da República Portuguesa, de 12 de dezembro de 2001.
[xi] Vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caridade
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