A lei do voluntariado
Duarte Paiva, fundador da ACA |
Portugal tem desde 1998 uma Lei Bases de
enquadramento jurídico do voluntariado – Lei 71/98 de 3 de novembro. Já a
primeira legislação portuguesa que aborda o tema foi em 1945 (Decreto-Lei n.º
35108). A Lei 71/98 visa definir as bases e o enquadramento jurídico do
voluntariado. Porém, e desde 1998, pouco mais foi desenvolvido no campo
jurídico sobre o voluntariado, à exceção de um ou outro decreto e do Conselho
Nacional para a Promoção do Voluntariado.
Quando comecei a participar em voluntariado
não havia qualquer enquadramento jurídico e depois de vários anos de atividade,
apenas tive contacto com a legislação quando me tornei dirigente associativo e
gestor de voluntariado. Ou seja, mais de metade da minha participação enquanto
voluntário, foi sem conhecimento deste enquadramento legal. Esta experiência é
ainda hoje a norma para a maioria das pessoas que realizam voluntariado, mas
vamos por partes.
Em resumo, a origem da palavra voluntário
nasce do adjetivo latino “voluntarius” que significa
“capacidade de escolha ou de decisão”. Portanto “há vida para além da
legislação”, ou melhor, há voluntariado para além da lei. Diria mesmo que a
existência de legislação e enquadramento jurídico é quase contrária à própria
conceção de voluntariado que, para além da origem da palavra que remete para a
liberdade de escolha, tem ainda em muitas conceções teóricas exatamente com
base na liberdade de escolha, motivações pessoais ou vontade de participar.
Tudo isto remete para uma informalidade pouco compatível com legislação. Neste
sentido podemos considerar que há voluntariado formal e informal, ou seja,
aquele que envolve o enquadramento jurídico, regras, direitos e deveres
(formal), e o informal, que está ligado à espontaneidade. Em toda esta equação,
entram ainda vários valores ligados ao voluntariado como o altruísmo, a
solidariedade, a dádiva ou a caridade. É normal esta relação com o voluntariado
pois na realidade, a base nacional do voluntariado está historicamente ligada a
ações junto da pobreza e da exclusão social, continuando ainda hoje a ser muito
relevante para as organizações promotoras de voluntariado, muitas das quais de
cariz religioso.
No entanto, é importante referir que
podíamos viver num contexto sem pobreza e exclusão e o voluntariado poderia
(deveria) continuar a existir. É enganoso pensar no voluntariado apenas como
algo dependente da pobreza e desigualdades, que apenas serve para minimizar
situações de exclusão e é exclusivamente altruísta. O voluntariado apenas
depende da vontade livre de escolher e participar.
Agora, e por outro lado, o enquadramento
jurídico dá-nos algumas coisas importantes, mesmo que possamos hoje considerar
que esta é uma lei que muito necessita de revisão e atualização. Podemos até
encontrar na lei atual algumas questões absurdas do ponto de vista prático. Mas
é a lei que temos e que devemos, pelo menos, conhecer e estabelecer formas de a
cumprir. Conhecer a lei é, para mim, essencial pois só assim haverá a
possibilidade de realizar as mudanças legislativas necessárias.
Neste momento, convivemos com uma situação
em que a lei é pouco conhecida e cumprida. Assim, é importante conhecer a
legislação, apresentá-la em ações de formação e sensibilização e estabelecer os
projetos e programas de voluntariado tendo em conta o que esta indica, sabendo,
naturalmente, adequar os contextos. Penso que nesta lei existem cinco pontos
importantes, os quais nos orientam neste vasto oceano que é o voluntariado.
O primeiro são as definições de
voluntariado, voluntário e organizações promotoras. Vamos considerar, para este
artigo, que estas definições são satisfatórias. O segundo ponto é o da
gratuitidade, ou seja, quem realiza voluntariado não pode receber qualquer
remuneração ou donativos pelo exercício. Isto não é o mesmo que ser compensado
por gastos relacionados com o voluntariado. Ou seja, a entidade pode suportar
custos diretamente relacionados (e justificados) com a atividade de
voluntariado, como por exemplo as deslocações, desde que claramente relacionada
com a atividade. Muitas vezes há esta dúvida.
O terceiro ponto é o caráter não lucrativo.
Isto parece-me essencial, caso contrário haveria uma porta gigante para a
exploração laboral. Este ponto coloca uma questão importante sobre a
legitimidade do voluntariado empresarial e a ligação de organizações com fins
lucrativos e o voluntariado. O quarto ponto é a formação que é apresentada
nesta lei como direito e dever. Penso que este tema é um dos mais relevantes na
legislação já que a formação é enormemente desconsiderada no exercício do
voluntariado.
Por último, no quinto ponto, temos o
princípio da complementa-ridade. Resumidamente, isto significa que o
voluntariado não pode substituir os recursos humanos remunerados necessá-rios.
Este ponto é fundamental pois há, em muitos casos, uma utilização abusiva do voluntariado
levando a que exista efetivamente substituição de postos de trabalho. Pode
parecer contraditório eu afirmar isto dado que noutro artigo já defendi o
voluntariado como uma possível forma de sociedade e economia. No entanto, não é
esta a realidade atual de organização social, logo não podemos transformar o
voluntariado num sistema de exploração. Isto é ainda mais preocupante no caso
de serviços sociais e outros que sejam garantidos por voluntariado. Como
podemos esperar que um ou uma profissional da área social possa garantir a
qualidade e cumprimento dos serviços? E como se responsabiliza um ou uma
profissional que esteja em regime de voluntariado? Não me parece possível nem
compatível.
Além destes cinco pontos, esta lei imprime
ainda um outro conceito que considero muito relevante e que vai ao encontro com
a verdadeira natureza do voluntariado. No Artigo 5º refere como princípio geral
que “O Estado reconhece o valor social do voluntariado como expressão
do exercício livre de uma cidadania ativa e solidária e promove e garante a sua
autonomia e pluralismo.” O Decreto-Lei n.º 389/99 de 30 de setembro
reafirma ainda mais a tónica da cidadania e liberdade afirmando que “O
voluntariado é uma atividade inerente ao exercício de cidadania que se traduz
numa relação solidária para com o próximo, participando, de forma livre e
organizada, na solução dos problemas que afetam a sociedade em geral.” O
fator de cidadania e de valores democráticos são realmente hoje relevantes no
entendimento e exercício do voluntariado. A solidariedade também está expressa
nesta legislação e no nosso consciente), mas creio que é aquela solidariedade
que torna as pessoas iguais e não diferentes ou é incompatível com os
princípios de cidadania e liberdade.
A convivência entre voluntariado e
legislação não tem sido pacífica, ou melhor, não tem sido de forma alguma. Um
dos motivos é que o poder político pouco está sensibilizado para o tema, e
quando diz algo sobre o voluntariado demostra mesmo isso, desconhecimento. O
outro é a profunda ligação caritativa que esta atividade tem na nossa
sociedade. Perante todas estas dualidades e particularidades que revestem o
voluntariado, então, o que fazemos? Qual o papel da legislação atual? Parece-me
que deixar esta importante atividade ao “acaso” como quase tem acontecido, não
é solução e pode promover situações abusivas e descredibilizar uma atividade
que é parte importante da sociedade e das nossas organizações de economia
social e solidária.
Neste momento, perante a lei que temos,
entendo que o importante é cumprir a lei, mesmo que (e bem sei) não seja
possível o cumprimento integral da mesma. Futuramente e com mais maturidade,
esta lei e toda a visão jurídica do voluntariado (e até a conceção económica e
social), deverá ser alvo de adequada reflexão e atualização. Esta atualização
deve reconhecer a necessidade de bem organizar o voluntariado, mas tendo em
conta as suas particularidades enquanto atividade de livre escolha, de
cidadania ativa, democracia, solidariedade e como fonte de educação e coesão
social.
Fonte: http://visao.sapo.pt/iniciativas/visaosolidaria/opiniaosolidaria/duartepaiva/2016-09-12-A-lei-do-voluntariado
Sem comentários:
Enviar um comentário