Cidadania
e participação nas USF
A Cidadania em Saúde emerge em 1978 da Declaração de Alma-Ata como “o
direito e dever das populações em participar individual e coletivamente no
planeamento e na prestação dos cuidados de saúde” (PNS 2012 – 2016).
Questões
prévias:
Qual o papel
do Voluntariado em saúde?
Existem
experiências de voluntariado em saúde, nos cuidados de saúde primários?
Que ligações possíveis a
comunidade onde se insere a USF, que intervenção Comunitária?
Introdução
O voluntariado,
houve, há e haverá, sempre que existam duas pessoas e pelo menos uma delas se
encontre em situação de desfavor, de carência, etc., e essa situação motive que
uma atue em favor da outra.
Portanto, e
embora antes tenham sido usados outros termos para designar a mesma realidade –
zeladores, cooperadores, cuidadores não formais, etc., o voluntariado não é uma
coisa nova, uma moda, algo que alguém se lembrou de inventar por exemplo, por
razões políticas e partidárias, para resolver o problema da falta de
mão-de-obra, ou para reduzir custos de exploração.
Antes de ter
a ver com as políticas, com as grandes políticas, o voluntariado tem a ver com
as pessoas.
Na sua
essência, o voluntariado é serviço de pessoa a pessoa e entre pessoas. Não a
Organizações nem entre Organizações.
Muitos passos
têm sido dados ao longo da história da humanidade no sentido da assunção do
voluntariado como algo verdadeiramente importante e intrínseco à vida das
pessoas e das comunidades, e que vale a pena promover e apoiar.
Em Portugal, um passo importante foi dado com a
Lei 71/98 que, segundo ela mesma, “visa
promover e garantir a todos os cidadãos a participação solidária em ações de
voluntariado e definir as bases do seu enquadramento jurídico”, tendo por
base o reconhecimento por parte do Estado do “valor social do voluntariado como expressão do exercício livre de uma
cidadania ativa e solidária” promovendo e garantindo a sua autonomia e
pluralismo – ou seja, os fins do voluntariado.
Pela Lei,
encontra-se definido que em Portugal o voluntariado é:
“O conjunto de ações de interesse social e
comunitário, realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos,
programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias
e da comunidade, desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou
privadas.”
E que o
conceito não abrange “as atuações que,
embora desinteressadas, tenham um carácter isolado e esporádico ou sejam
determinadas por razões familiares, de amizade e de boa vizinhança.”
Ou seja, o
voluntariado não é apenas bem-fazer, não é uma atividade free-lancer ou
liberal, mas atuação séria, responsável, comprometida, organizada e enquadrada
institucional e tecnicamente.
Não há
voluntariado nem voluntários a bel-prazer, nem quando dá jeito ou quando
apetece, nem para ganhar o céu.
Antes de
avançar parece-me importante referir os sete princípios que em Portugal também
norteiam a atividade do voluntariado e que nos podem ajudar a perceber melhor,
mais à frente, o papel do voluntariado, mesmo no campo da saúde. São eles:
A
solidariedade, a participação, a cooperação, a complementaridade, a gratuidade,
a responsabilidade e a convergência.
“O princípio da solidariedade traduz-se na
responsabilidade de todos os cidadãos pela realização dos fins do voluntariado.
O princípio da participação implica a intervenção das
organizações representativas do voluntariado em matérias respeitantes aos
domínios em que os voluntários desenvolvem o seu trabalho.
O princípio da cooperação envolve a possibilidade de
as organizações promotoras e as organizações representativas do voluntariado
estabelecerem relações e programas de ação concertada.
O princípio da complementaridade pressupõe que o
voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à
prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente
definidas.
O princípio da gratuitidade pressupõe que o voluntário
não é remunerado, nem pode receber subvenções ou donativos, pelo exercício do
seu trabalho voluntário.
O princípio da responsabilidade reconhece que o
voluntário é responsável pelo exercício da atividade que se comprometeu
realizar, dadas as expectativas criadas aos destinatários do trabalho
voluntário.
O princípio da convergência determina a harmonização
da ação do voluntário com a cultura e objetivos institucionais da entidade
promotora.”
O papel do voluntariado no campo da saúde
Tradicionalmente,
quando se falava em voluntariado em saúde, aludia-se ao voluntariado que as
senhoras de bata amarela realizam nas Unidades Hospitalares. Era o chamado
voluntariado hospitalar.
As coisas
mudam. O setor da saúde evolui, redefine-se, etc., e também o voluntariado se
vai estabelecendo em outras Unidades de Saúde que já não exclusivamente com
internamento.
Apesar de
hoje o voluntariado se situar ainda e predominantemente em ambiente hospitalar,
a verdade é que já se começa a alargar a outras áreas da saúde e do bem-estar:
cuidados de saúde primários, cuidados continuados, cuidados paliativos e
cuidados na comunidade, e outros equipamentos onde se prestam cuidados de
saúde.
Seja como
for, se a finalidade do voluntariado é o exercício ativo da cidadania em contexto
de solidariedade, também o grande objetivo do voluntariado no campo da saúde é,
para além disso, também a humanização dos serviços e dos cuidados que se
prestam aos destinatários, sejam eles doentes ou não.
No campo da
saúde, segundo o pensamento da FNVS, o objetivo do voluntariado pode traduzir-se na
realização de “tarefas de comunicação, de
acolhimento, de companhia, de encaminhamento e de oferta de refeições ligeiras
ou pequenos serviços aos utentes e seus familiares, em Equipamentos onde se
prestam cuidados de saúde. Também na visita a pessoas que temporariamente ou em
situação mais prolongada, se encontram nos Serviços dos referidos Equipamentos,
cujo acesso se encontre autorizado, bem como a ajuda na realização de pequenas
tarefas da vida diária, no acompanhamento a consultas e a serviços públicos, na
realização de algumas compras e similares, promovendo assim a facilitação do
acesso aos serviços destinados aos cidadãos, e contribuindo para o bem-estar geral e a
inclusão social das pessoas beneficiárias da ajuda voluntária, nos domicílios
dos utentes dos Equipamentos e fora daqueles, em situação de pós-alta ou não”.
O que acabo
de afirmar deve estar em sintonia com os já mencionados sete princípios do
voluntariado preconizados pela Lei 71/98.
E por isso, o
voluntariado no campo da saúde deverá ser sempre e nomeadamente:
Um
voluntariado sério, organizado, estruturado e vocacionado principalmente para a
humanização dos serviços, dos cuidados e das pessoas.
Um
voluntariado de pessoas, para pessoas e com as pessoas, sempre de ajuda a
pessoas, que contribui para o desenvolvimento pessoal e social.
Um
voluntariado que prima pelo respeito pessoal e pelo sigilo de situações e de
dados.
Um
voluntariado onde se respeitam os direitos dos voluntários e dos beneficiários.
Um
voluntariado onde se promove a autonomia dos beneficiários e as obrigações dos
voluntários.
Um
voluntariado exigente, ao nível da continuada disponibilidade para servir, da
entrega e da prestação livre mas responsável.
Um
voluntariado que promove e contribui para a qualidade dos serviços e dos
cuidados que se prestam nas Unidades de Saúde, e que visa a satisfação de todos
os intervenientes, especialmente os utentes.
Desta forma,
o voluntariado que se realiza no campo da saúde é sempre uma mais-valia para o
setor, para as Organizações e para as pessoas. Logo, também aqui, é promotor de
desenvolvimento.
E qual o papel do voluntariado nas USF’?
Para além do
que já disse penso que será importante referir que para lá do aspeto da
humanização, outra grande marca do voluntariado no campo da saúde, é a da
cooperação.
Sim,
cooperação. O voluntariado protagonizado pelas Ligas de Amigos e Associações de
voluntários, no campo da saúde, embora com respeito por outros tipos de
participação dos cidadãos na coisa pública, é o cooperar, o colaborar, o ajudar
a zelar, o ajudar a cuidar, sem confusão de papéis nem do que compete a
voluntários e profissionais.
Também pode
ser o de ajuda à defesa de interesses dos utentes, mas esse não é o seu papel
principal.
Nem estou a
ver que deva ser promotora da defesa dos interesses dos trabalhadores.
E que papel
podem ter, ou que tarefas podem desenvolver, os voluntários enquadrados por
Unidades de Saúde Familiar ou por outro tipo de Unidade de Saúde dos Cuidados
de Saúde Primários?
Visitação
domiciliária de doentes acamados, idosos, famílias em situação de
vulnerabilidade. (USF Fernão Ferro Mais - Seixal).
Promover a
participação da comunidade na vida da USF, melhorar a humanização dos cuidados
de saúde e cooperar com outras entidades. (USF Monte da Caparica - Almada).
Apoio social
e humanitário aos utentes da USF, em colaboração com os serviços, visando a
melhoria do nível de saúde e do bem-estar dos utentes (USF Serpa Pinto – Porto).
Ajudar na
melhoria do nível de saúde dos utentes, apoio humanitário aos utentes
carenciados, colaborando na assistência domiciliária e ambulatória, apoiar
iniciativas destinadas a doentes crónicos e convalescentes, e promover
ações de carácter social, cultural, desportivo e de lazer. (USF Buarcos –
Figueira da Foz).
Companhia aos
utentes, quer nos serviços de saúde, quer no domicílio, onde poderão ajudar a
passar melhor os dias, possibilitando ao apoiado, a exposição das suas
histórias de vida, as suas dificuldades, necessidades, angústias e anseios, bem
como deslocação à mercearia, aos serviços de água e eletricidade para efetuar
os pagamentos destes serviços (ACES Maia).
Identificar
necessidades que sendo fruto das circunstâncias concretas do âmbito da Unidade,
sejam passíveis de obter resposta através do voluntariado, na medida em que a
sua solução radique nos princípios da solidariedade, da confiança, da
participação, da entreajuda e cooperação, da complementaridade, da
gratuitidade, da responsabilidade e da convergência; Promover atividades de
apoio pessoal e institucional, em regime de voluntariado, complementares ao
apoio técnico e profissional desenvolvido pela UCC, garantindo a adequação das
mesmas em função das necessidades identificadas;
Promover as
relações de proximidade, confiança e interconhecimento entre as pessoas e
serviços da Unidade, reforçando os laços de solidariedade aí existentes; Contribuir para
a melhoria da qualidade do acesso aos cuidados prestados pela UCC, no sentido
da eficiência e da eficácia da prestação dos serviços e da satisfação dos
utentes. Potenciar o
trabalho em parceria, a promoção da cooperação e a rentabilização de recursos; Promover a
qualificação e a participação ativa de todos os intervenientes. (UCC Boavista –
Porto).
Assim: O
voluntariado que está a acontecer nos Cuidados de Saúde Primários, parece não
diferir muito do que antes apresentei como objetivo do voluntariado no campo da
saúde, e portanto mais de ação social que prestação de cuidados de saúde em si
mesmos.
Creio estar
mais focalizado na promoção do bem-estar pessoal e social das pessoas, e isso é
bom. É mesmo muito
bom. É promotor de
saúde.
Afinal o
conceito saúde da OMS define que aquela é “um estado de completo bem-estar
físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.”
Este
voluntariado parece caracterizar-me também e muito, pela atuação mais na
comunidade que no interior das Unidades de Saúde.
Afinal é
também assim, ou pode afirmar-se como sendo voluntariado de proximidade e
comunitário, numa relação estreita entre as Unidades de Saúde e as pessoas nos
seus ambientes naturais, bem como em articulação ou parceria com outras
Organizações da comunidade.
Conclusão
Participar ou
não participar nas USF’ por via do voluntariado?
Se por um
lado há razões para que os cidadãos participem na coisa pública, nomeadamente
no que tem a ver com o exercício da cidadania ativa, por outro lado também
deverão haver razões da parte da USF’ para que essa participação seja efetiva.
Primeiro tem
que se querer. E querer é poder.
Segundo, para
que os cidadãos participem na vida das USF’, isso mesmo tem que ser visto como
uma mais-valia para a prestação dos cuidados e dos serviços que se prestam.
Se esta minha
visão da arte se pode aplicar às várias formas de participação, por maioria de
razão se aplica ao exercício do voluntariado.
A intervenção
do voluntariado e dos voluntários, prestação de um serviço e relação
interpessoal afetivamente positiva, deve acontecer no mais profundo respeito
por regras e papéis, quer pessoais quer das Organizações.
Deve
acontecer com agentes devidamente selecionados, capacitados e verdadeiramente
disponíveis, por exemplo, para o estabelecimento de relações interpessoais que
promovam o bem-estar e a felicidade das pessoas ajudadas, bem como a respetiva
inclusão social.
Deve
acontecer com enquadramentos adequados e sérios, quer no nível de parcerias,
projetos ou programas, quer ao nível da definição de perfis de função, da
monitorização de dados, do desempenho avaliado e da acreditação e certificação.
Termino: O
voluntariado, para além do aspeto da cidadania, também pode ser parte da
resposta a certa ou certas necessidades.
Nunca é a
resposta completa, mas pode ser parte dela. O
voluntariado é complementar. Não tem o papel principal. E no campo da
saúde, isso é por demais exigido e evidente.
É pertinente? A qualidade e
a excelência dos serviços e dos cuidados prestados pelas USF’ podem melhorar
com o contributo do voluntariado? Então sejamos também nós agentes da ajuda
solidária, gratuita e disponível, tão características dos voluntários do campo
da saúde. Implementemos
serviços de voluntariado nas nossas USF’.
Agora se não
for bem assim, tenhamos também a coragem de dizer não, porque isso pode não ser
a resposta adequada ou a que efetivamente queremos. E quando não
queremos parece que as coisas não marcham assim tão bem.
Segundo o
Plano Nacional de Saúde 2012 – 2016, “o
utente do século XXI (Coulter A, 2002) é decisor, gestor e coprodutor de saúde,
avaliador, agente de mudança, contribuinte e cidadão ativo, cuja voz deve
influenciar os decisores em saúde (Carta de OTawa, 1986).”
Muito
obrigado. Bem-hajam!
Aveiro, 14 de maio de 2015, João António Pereira, Presidente da Direção da Federação
Nacional de Voluntariado em Saúde