sábado, 14 de novembro de 2015

O que disse o presidente:

Cidadania e participação nas USF



A Cidadania em Saúde emerge em 1978 da Declaração de Alma-Ata como “o direito e dever das populações em participar individual e coletivamente no planeamento e na prestação dos cuidados de saúde” (PNS 2012 – 2016).

Questões prévias:
Qual o papel do Voluntariado em saúde?
Existem experiências de voluntariado em saúde, nos cuidados de saúde primários?
Que ligações possíveis a comunidade onde se insere a USF, que intervenção Comunitária?

Introdução
O voluntariado, houve, há e haverá, sempre que existam duas pessoas e pelo menos uma delas se encontre em situação de desfavor, de carência, etc., e essa situação motive que uma atue em favor da outra.
Portanto, e embora antes tenham sido usados outros termos para designar a mesma realidade – zeladores, cooperadores, cuidadores não formais, etc., o voluntariado não é uma coisa nova, uma moda, algo que alguém se lembrou de inventar por exemplo, por razões políticas e partidárias, para resolver o problema da falta de mão-de-obra, ou para reduzir custos de exploração.
Antes de ter a ver com as políticas, com as grandes políticas, o voluntariado tem a ver com as pessoas.
Na sua essência, o voluntariado é serviço de pessoa a pessoa e entre pessoas. Não a Organizações nem entre Organizações.
Muitos passos têm sido dados ao longo da história da humanidade no sentido da assunção do voluntariado como algo verdadeiramente importante e intrínseco à vida das pessoas e das comunidades, e que vale a pena promover e apoiar.
 Em Portugal, um passo importante foi dado com a Lei 71/98 que, segundo ela mesma, “visa promover e garantir a todos os cidadãos a participação solidária em ações de voluntariado e definir as bases do seu enquadramento jurídico”, tendo por base o reconhecimento por parte do Estado do “valor social do voluntariado como expressão do exercício livre de uma cidadania ativa e solidária” promovendo e garantindo a sua autonomia e pluralismo – ou seja, os fins do voluntariado.
Pela Lei, encontra-se definido que em Portugal o voluntariado é:
O conjunto de ações de interesse social e comunitário, realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos, das famílias e da comunidade, desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades públicas ou privadas.”
E que o conceito não abrange “as atuações que, embora desinteressadas, tenham um carácter isolado e esporádico ou sejam determinadas por razões familiares, de amizade e de boa vizinhança.”
Ou seja, o voluntariado não é apenas bem-fazer, não é uma atividade free-lancer ou liberal, mas atuação séria, responsável, comprometida, organizada e enquadrada institucional e tecnicamente.
Não há voluntariado nem voluntários a bel-prazer, nem quando dá jeito ou quando apetece, nem para ganhar o céu.
Antes de avançar parece-me importante referir os sete princípios que em Portugal também norteiam a atividade do voluntariado e que nos podem ajudar a perceber melhor, mais à frente, o papel do voluntariado, mesmo no campo da saúde. São eles:
A solidariedade, a participação, a cooperação, a complementaridade, a gratuidade, a responsabilidade e a convergência.
O princípio da solidariedade traduz-se na responsabilidade de todos os cidadãos pela realização dos fins do voluntariado.
O princípio da participação implica a intervenção das organizações representativas do voluntariado em matérias respeitantes aos domínios em que os voluntários desenvolvem o seu trabalho.
O princípio da cooperação envolve a possibilidade de as organizações promotoras e as organizações representativas do voluntariado estabelecerem relações e programas de ação concertada. 
O princípio da complementaridade pressupõe que o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.
O princípio da gratuitidade pressupõe que o voluntário não é remunerado, nem pode receber subvenções ou donativos, pelo exercício do seu trabalho voluntário.
O princípio da responsabilidade reconhece que o voluntário é responsável pelo exercício da atividade que se comprometeu realizar, dadas as expectativas criadas aos destinatários do trabalho voluntário.
O princípio da convergência determina a harmonização da ação do voluntário com a cultura e objetivos institucionais da entidade promotora.”

O papel do voluntariado no campo da saúde
Tradicionalmente, quando se falava em voluntariado em saúde, aludia-se ao voluntariado que as senhoras de bata amarela realizam nas Unidades Hospitalares. Era o chamado voluntariado hospitalar.
As coisas mudam. O setor da saúde evolui, redefine-se, etc., e também o voluntariado se vai estabelecendo em outras Unidades de Saúde que já não exclusivamente com internamento.
Apesar de hoje o voluntariado se situar ainda e predominantemente em ambiente hospitalar, a verdade é que já se começa a alargar a outras áreas da saúde e do bem-estar: cuidados de saúde primários, cuidados continuados, cuidados paliativos e cuidados na comunidade, e outros equipamentos onde se prestam cuidados de saúde.
Seja como for, se a finalidade do voluntariado é o exercício ativo da cidadania em contexto de solidariedade, também o grande objetivo do voluntariado no campo da saúde é, para além disso, também a humanização dos serviços e dos cuidados que se prestam aos destinatários, sejam eles doentes ou não.
No campo da saúde, segundo o pensamento da FNVS, o objetivo do voluntariado pode traduzir-se na realização de “tarefas de comunicação, de acolhimento, de companhia, de encaminhamento e de oferta de refeições ligeiras ou pequenos serviços aos utentes e seus familiares, em Equipamentos onde se prestam cuidados de saúde. Também na visita a pessoas que temporariamente ou em situação mais prolongada, se encontram nos Serviços dos referidos Equipamentos, cujo acesso se encontre autorizado, bem como a ajuda na realização de pequenas tarefas da vida diária, no acompanhamento a consultas e a serviços públicos, na realização de algumas compras e similares, promovendo assim a facilitação do acesso aos serviços destinados aos cidadãos, e contribuindo para o bem-estar geral e a inclusão social das pessoas beneficiárias da ajuda voluntária, nos domicílios dos utentes dos Equipamentos e fora daqueles, em situação de pós-alta ou não”.
O que acabo de afirmar deve estar em sintonia com os já mencionados sete princípios do voluntariado preconizados pela Lei 71/98.
E por isso, o voluntariado no campo da saúde deverá ser sempre e nomeadamente:
Um voluntariado sério, organizado, estruturado e vocacionado principalmente para a humanização dos serviços, dos cuidados e das pessoas.
Um voluntariado de pessoas, para pessoas e com as pessoas, sempre de ajuda a pessoas, que contribui para o desenvolvimento pessoal e social.
Um voluntariado que prima pelo respeito pessoal e pelo sigilo de situações e de dados.
Um voluntariado onde se respeitam os direitos dos voluntários e dos beneficiários.
Um voluntariado onde se promove a autonomia dos beneficiários e as obrigações dos voluntários.
Um voluntariado exigente, ao nível da continuada disponibilidade para servir, da entrega e da prestação livre mas responsável.
Um voluntariado que promove e contribui para a qualidade dos serviços e dos cuidados que se prestam nas Unidades de Saúde, e que visa a satisfação de todos os intervenientes, especialmente os utentes.
Desta forma, o voluntariado que se realiza no campo da saúde é sempre uma mais-valia para o setor, para as Organizações e para as pessoas. Logo, também aqui, é promotor de desenvolvimento.

E qual o papel do voluntariado nas USF’?
Para além do que já disse penso que será importante referir que para lá do aspeto da humanização, outra grande marca do voluntariado no campo da saúde, é a da cooperação.
Sim, cooperação. O voluntariado protagonizado pelas Ligas de Amigos e Associações de voluntários, no campo da saúde, embora com respeito por outros tipos de participação dos cidadãos na coisa pública, é o cooperar, o colaborar, o ajudar a zelar, o ajudar a cuidar, sem confusão de papéis nem do que compete a voluntários e profissionais.
Também pode ser o de ajuda à defesa de interesses dos utentes, mas esse não é o seu papel principal.
Nem estou a ver que deva ser promotora da defesa dos interesses dos trabalhadores.
E que papel podem ter, ou que tarefas podem desenvolver, os voluntários enquadrados por Unidades de Saúde Familiar ou por outro tipo de Unidade de Saúde dos Cuidados de Saúde Primários?
Visitação domiciliária de doentes acamados, idosos, famílias em situação de vulnerabilidade. (USF Fernão Ferro Mais - Seixal).
Promover a participação da comunidade na vida da USF, melhorar a humanização dos cuidados de saúde e cooperar com outras entidades. (USF Monte da Caparica - Almada).
Apoio social e humanitário aos utentes da USF, em colaboração com os serviços, visando a melhoria do nível de saúde e do bem-estar dos utentes (USF Serpa Pinto – Porto).
Ajudar na melhoria do nível de saúde dos utentes, apoio humanitário aos utentes carenciados, colaborando na assistência domiciliária e ambulatória, apoiar iniciativas destinadas a doentes crónicos e convalescentes, e promover ações de carácter social, cultural, desportivo e de lazer. (USF Buarcos – Figueira da Foz).
Companhia aos utentes, quer nos serviços de saúde, quer no domicílio, onde poderão ajudar a passar melhor os dias, possibilitando ao apoiado, a exposição das suas histórias de vida, as suas dificuldades, necessidades, angústias e anseios, bem como deslocação à mercearia, aos serviços de água e eletricidade para efetuar os pagamentos destes serviços (ACES Maia).
Identificar necessidades que sendo fruto das circunstâncias concretas do âmbito da Unidade, sejam passíveis de obter resposta através do voluntariado, na medida em que a sua solução radique nos princípios da solidariedade, da confiança, da participação, da entreajuda e cooperação, da complementaridade, da gratuitidade, da responsabilidade e da convergência; Promover atividades de apoio pessoal e institucional, em regime de voluntariado, complementares ao apoio técnico e profissional desenvolvido pela UCC, garantindo a adequação das mesmas em função das necessidades identificadas;
Promover as relações de proximidade, confiança e interconhecimento entre as pessoas e serviços da Unidade, reforçando os laços de solidariedade aí existentes; Contribuir para a melhoria da qualidade do acesso aos cuidados prestados pela UCC, no sentido da eficiência e da eficácia da prestação dos serviços e da satisfação dos utentes. Potenciar o trabalho em parceria, a promoção da cooperação e a rentabilização de recursos; Promover a qualificação e a participação ativa de todos os intervenientes. (UCC Boavista – Porto).
Assim: O voluntariado que está a acontecer nos Cuidados de Saúde Primários, parece não diferir muito do que antes apresentei como objetivo do voluntariado no campo da saúde, e portanto mais de ação social que prestação de cuidados de saúde em si mesmos.
Creio estar mais focalizado na promoção do bem-estar pessoal e social das pessoas, e isso é bom. É mesmo muito bom. É promotor de saúde.
Afinal o conceito saúde da OMS define que aquela é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.”
Este voluntariado parece caracterizar-me também e muito, pela atuação mais na comunidade que no interior das Unidades de Saúde.
Afinal é também assim, ou pode afirmar-se como sendo voluntariado de proximidade e comunitário, numa relação estreita entre as Unidades de Saúde e as pessoas nos seus ambientes naturais, bem como em articulação ou parceria com outras Organizações da comunidade.

Conclusão
Participar ou não participar nas USF’ por via do voluntariado?
Se por um lado há razões para que os cidadãos participem na coisa pública, nomeadamente no que tem a ver com o exercício da cidadania ativa, por outro lado também deverão haver razões da parte da USF’ para que essa participação seja efetiva.
Primeiro tem que se querer. E querer é poder.
Segundo, para que os cidadãos participem na vida das USF’, isso mesmo tem que ser visto como uma mais-valia para a prestação dos cuidados e dos serviços que se prestam.
Se esta minha visão da arte se pode aplicar às várias formas de participação, por maioria de razão se aplica ao exercício do voluntariado.
A intervenção do voluntariado e dos voluntários, prestação de um serviço e relação interpessoal afetivamente positiva, deve acontecer no mais profundo respeito por regras e papéis, quer pessoais quer das Organizações.
Deve acontecer com agentes devidamente selecionados, capacitados e verdadeiramente disponíveis, por exemplo, para o estabelecimento de relações interpessoais que promovam o bem-estar e a felicidade das pessoas ajudadas, bem como a respetiva inclusão social.
Deve acontecer com enquadramentos adequados e sérios, quer no nível de parcerias, projetos ou programas, quer ao nível da definição de perfis de função, da monitorização de dados, do desempenho avaliado e da acreditação e certificação.
Termino: O voluntariado, para além do aspeto da cidadania, também pode ser parte da resposta a certa ou certas necessidades.
Nunca é a resposta completa, mas pode ser parte dela. O voluntariado é complementar. Não tem o papel principal. E no campo da saúde, isso é por demais exigido e evidente.
É pertinente? A qualidade e a excelência dos serviços e dos cuidados prestados pelas USF’ podem melhorar com o contributo do voluntariado? Então sejamos também nós agentes da ajuda solidária, gratuita e disponível, tão características dos voluntários do campo da saúde. Implementemos serviços de voluntariado nas nossas USF’.
Agora se não for bem assim, tenhamos também a coragem de dizer não, porque isso pode não ser a resposta adequada ou a que efetivamente queremos. E quando não queremos parece que as coisas não marcham assim tão bem.
Segundo o Plano Nacional de Saúde 2012 – 2016, “o utente do século XXI (Coulter A, 2002) é decisor, gestor e coprodutor de saúde, avaliador, agente de mudança, contribuinte e cidadão ativo, cuja voz deve influenciar os decisores em saúde (Carta de OTawa, 1986).”
Muito obrigado. Bem-hajam!

Aveiro, 14 de maio de 2015, João António Pereira, Presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde

Texto disponível em pdf, também em: http://www.associapro.com/docdownload.aspx?file=doc2865.pdf

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