terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Pelos caminhos do voluntariado......

Duarte Paiva / Fundador da ACA
Então,
quando o Alexandre veio ter comigo,
perguntei-lhe o que tinha acontecido.
Ele respondeu:
“Nada,
ela só precisava de conversar”

Ao longo destes anos na ACA (Associação Conversa Amiga), fui estando envolvido e em contacto com projetos de voluntariado em saúde. O primeiro projeto, já com uns bons anos de existência, foi o “Saúde na Rua”, que leva voluntariado médico e de enfermagem às ruas da cidade apoiando pessoas em situação de sem-abrigo na sua saúde.
A primeira equipa deste voluntariado foi constituída por um estudante de medicina (Alexandre) que rapidamente envolveu outras pessoas. A primeira mochila “médica” que servia para transportar material de saúde, era uma mochila banal comprada numa loja qualquer equipada de forma muito rudimentar, incluindo um estetoscópio de propaganda médica com pouca qualidade encontrado na faculdade de medicina do Hospital de Santa Maria. Desses tempos e até hoje, muito mudou no “Saúde na Rua”, passando para várias equipas de saúde, equipamento mais sofisticado e em quantidade necessária, profissionais mais qualificados, mais parcerias e introdução de novas tecnologias na rua.
Mais recentemente, desenvolvi um outro projeto de inovação social que utiliza parcialmente voluntariado em saúde: “Quiosque da Saúde”. Este é um projeto de empreendedorismo e inovação social que, com pouco de mais de um ano e apenas com um quiosque (entretanto já passou a dois e em breve serão três), recebeu dois reconhecimentos, já apoiou alguns milhares de pessoas e conta com envolvimento de voluntariado. Tudo isto fez-me aprender e questionar mais sobre saúde, o acesso à mesma e o possível papel do voluntariado neste tema.
O voluntariado em saúde, realizado por profissionais do setor, é uma excelente forma de descentralizar a saúde da instituição hospitalar, complementar a saúde primária e inovar em respostas e soluções socialmente pertinentes. É também uma forma de levar mais justiça no acesso à saúde, sobretudo por populações ou grupos que de alguma forma estejam mais vulneráveis. Além de tudo isto, é uma excelente “escola” para estudantes e jovens profissionais de saúde que, neste processo, vão desenvolvendo novas competências, aquelas que tantas vezes nos queixamos de não terem quando nos atendem nas unidades de saúde. Vão também desenvolvendo um sentimento de missão tão necessário nestas áreas, onde as pessoas devem estar sempre acima de tudo, não olhando para esta atividade apenas como uma profissão isenta de sentido que vá para além da mera obrigação.
O voluntariado em saúde pode também contribuir para a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) que reconhece a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Ou seja, a saúde é algo bem mais holístico e completo do que uma ida ao hospital ou o acesso a um determinado profissional especializado. No entanto, esta não parece ser a perceção da população em geral, sendo que não devemos esperar pela doença para ter contacto com formas de promover a saúde, e o bem-estar faz parte de “ter saúde”.
É por isto que uma organização como a ACA, que tem na “conversa” a sua forma de atuação e de aprendizagem, a qual é o motor do desenvolvimento dos projetos, desenvolveu uma área de voluntariado em saúde com projetos e ações concretas. As nossas equipas de voluntariado não se limitam a dar um apoio em saúde, seja no aconselhamento e educação para a saúde, seja em algo mais efetivo e concreto. Tem sempre por base a “conversa terapêutica”, instrumento basilar e orgânico de uma boa relação que leva a um bem-estar mais completo e muitas vezes um desbloquear de resistências a eventuais apoios. Digamos que a conversa é metade do “medicamento” e, em alguns casos, até é o medicamento completo.
O voluntariado em saúde, praticado por profissionais da área, é cada vez mais pertinente e irá enriquecer a nossa sociedade de muitas formas. Dará mais acesso e soluções às pessoas e, por outro lado, desenvolverá melhores competências e espírito de missão nos profissionais de saúde, tão necessário para que ninguém fique sem um bom apoio. Há pouco tempo perguntei a alguns jovens de medicina e enfermagem por que razão realizam voluntariado em saúde, utilizando as suas competências. Na conversa, foram-me explicando que de alguma forma, aqui (no voluntariado) podiam dar um pouco mais e tinham a oportunidade de praticar a saúde da forma que acham que “devia ser”. Claro que não se estavam a referir aos aspetos de acesso a recursos, pois as unidades em que estão são de longe bem mais sofisticadas e não se substituem. Falavam sim da forma, do tempo dedicado às pessoas, da humanidade, da oportunidade de se envolverem, mesmo com recursos mais escassos e situações que, por vezes, são frustrantes. No fundo, o encontro do sentido e do foco que os levou a escolher a sua profissão: as pessoas.
Nestes anos de experiência em que vou estando ligado a este tipo de voluntariado, penso ser também necessário haver mais envolvimento de vários profissionais de saúde no voluntariado, e não apenas os mais correntes. Precisamos de saúde mental, de farmácia, de medicina dentária, de fisioterapia e de tantas outras convencionais ou não convencionais. Precisamos de pessoas que via voluntariado, possam ser promotoras desta saúde assente não na “ausência de doença”, mas sim num “bem-estar completo”.
E é esta a razão pela qual, por exemplo, o projeto “Quiosque da Saúde” existe como existe, pois a própria presença de um pequeno local, onde é possível ter contacto com a saúde de forma simples e fácil, na normalidade dos nossos dias, é também um símbolo de bem-estar e segurança na comunidade, sobretudo junto de pessoas idosas. “Se precisar, é só ir ali” tal como ir comprar uma revista ou jornal num quiosque. Mas também se não precisar, posso ir lá dar uma “conversinha”. É uma forma poderosa de bem-estar e prevenção, mas também, por vezes, um “salva vidas” como já aconteceu numa e outra ocasião onde se evitaram problemas sérios destinados à fatalidade.
Já na rua, junto de pessoas em situação de sem-abrigo, ou em casa de pessoas idosas, as necessidades são muitas, mas a base é sempre a mesma, um bom contacto com as pessoas. No primeiro ano do “Saúde na Rua”, lembro-me de uma história marcante de uma idosa que se encontrava a dormir no Terreiro do Paço, quando este era ainda casa para muitas pessoas. Ela pediu para falar com um médico (ainda o Alexandre) sabendo que tínhamos um na equipa. Assim foi, quando ele se libertou da pessoa com quem estava, dedicou cerca de uma hora a esta senhora. Num espaço um pouco mais escondido, junto de uma porta, tiveram alguma privacidade para observação e conversa. Quando esta senhora de rosto rugoso e cansado saiu de lá, parecia outra, com um sorriso e bem-estar nada semelhante ao primeiro encontro. Então, quando o Alexandre veio ter comigo, perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ele respondeu: “Nada, ela só precisava de conversar”.
http://visao.sapo.pt/iniciativas/visaosolidaria/opiniaosolidaria/duartepaiva/2016-01-04-Voluntariado-em-saude

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