Duarte Paiva / Fundador da ACA |
Então,
quando o Alexandre veio ter comigo,
perguntei-lhe o que tinha acontecido.
Ele respondeu:
“Nada,
ela só precisava de conversar”
Ao longo destes anos na ACA
(Associação Conversa Amiga), fui estando envolvido e em contacto com projetos
de voluntariado em saúde. O primeiro projeto, já com uns bons anos de
existência, foi o “Saúde na Rua”, que leva voluntariado médico e de enfermagem
às ruas da cidade apoiando pessoas em situação de sem-abrigo na sua saúde.
A primeira equipa deste
voluntariado foi constituída por um estudante de medicina (Alexandre) que
rapidamente envolveu outras pessoas. A primeira mochila “médica” que servia
para transportar material de saúde, era uma mochila banal comprada numa loja
qualquer equipada de forma muito rudimentar, incluindo um estetoscópio de
propaganda médica com pouca qualidade encontrado na faculdade de medicina do
Hospital de Santa Maria. Desses tempos e até hoje, muito mudou no “Saúde na
Rua”, passando para várias equipas de saúde, equipamento mais sofisticado e em
quantidade necessária, profissionais mais qualificados, mais parcerias e
introdução de novas tecnologias na rua.
Mais recentemente, desenvolvi um
outro projeto de inovação social que utiliza parcialmente voluntariado em
saúde: “Quiosque da Saúde”. Este é um projeto de empreendedorismo e inovação
social que, com pouco de mais de um ano e apenas com um quiosque (entretanto já
passou a dois e em breve serão três), recebeu dois reconhecimentos, já apoiou
alguns milhares de pessoas e conta com envolvimento de voluntariado. Tudo isto
fez-me aprender e questionar mais sobre saúde, o acesso à mesma e o possível
papel do voluntariado neste tema.
O voluntariado em saúde,
realizado por profissionais do setor, é uma excelente forma de descentralizar a
saúde da instituição hospitalar, complementar a saúde primária e inovar em
respostas e soluções socialmente pertinentes. É também uma forma de levar mais
justiça no acesso à saúde, sobretudo por populações ou grupos que de alguma
forma estejam mais vulneráveis. Além de tudo isto, é uma excelente “escola”
para estudantes e jovens profissionais de saúde que, neste processo, vão
desenvolvendo novas competências, aquelas que tantas vezes nos queixamos de não
terem quando nos atendem nas unidades de saúde. Vão também desenvolvendo um
sentimento de missão tão necessário nestas áreas, onde as pessoas devem estar
sempre acima de tudo, não olhando para esta atividade apenas como uma profissão
isenta de sentido que vá para além da mera obrigação.
O voluntariado em saúde pode
também contribuir para a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) que
reconhece a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social
e não apenas a ausência de doença”. Ou seja, a saúde é algo bem mais holístico
e completo do que uma ida ao hospital ou o acesso a um determinado profissional
especializado. No entanto, esta não parece ser a perceção da população em
geral, sendo que não devemos esperar pela doença para ter contacto com formas
de promover a saúde, e o bem-estar faz parte de “ter saúde”.
É por isto que uma organização
como a ACA, que tem na “conversa” a sua forma de atuação e de aprendizagem, a
qual é o motor do desenvolvimento dos projetos, desenvolveu uma área de
voluntariado em saúde com projetos e ações concretas. As nossas equipas de
voluntariado não se limitam a dar um apoio em saúde, seja no aconselhamento e
educação para a saúde, seja em algo mais efetivo e concreto. Tem sempre por
base a “conversa terapêutica”, instrumento basilar e orgânico de uma boa
relação que leva a um bem-estar mais completo e muitas vezes um desbloquear de
resistências a eventuais apoios. Digamos que a conversa é metade do “medicamento”
e, em alguns casos, até é o medicamento completo.
O voluntariado em saúde,
praticado por profissionais da área, é cada vez mais pertinente e irá
enriquecer a nossa sociedade de muitas formas. Dará mais acesso e soluções às
pessoas e, por outro lado, desenvolverá melhores competências e espírito de
missão nos profissionais de saúde, tão necessário para que ninguém fique sem um
bom apoio. Há pouco tempo perguntei a alguns jovens de medicina e enfermagem
por que razão realizam voluntariado em saúde, utilizando as suas competências.
Na conversa, foram-me explicando que de alguma forma, aqui (no voluntariado)
podiam dar um pouco mais e tinham a oportunidade de praticar a saúde da forma
que acham que “devia ser”. Claro que não se estavam a referir aos aspetos de
acesso a recursos, pois as unidades em que estão são de longe bem mais
sofisticadas e não se substituem. Falavam sim da forma, do tempo dedicado às
pessoas, da humanidade, da oportunidade de se envolverem, mesmo com recursos
mais escassos e situações que, por vezes, são frustrantes. No fundo, o encontro
do sentido e do foco que os levou a escolher a sua profissão: as pessoas.
Nestes anos de experiência em que
vou estando ligado a este tipo de voluntariado, penso ser também necessário
haver mais envolvimento de vários profissionais de saúde no voluntariado, e não
apenas os mais correntes. Precisamos de saúde mental, de farmácia, de medicina
dentária, de fisioterapia e de tantas outras convencionais ou não
convencionais. Precisamos de pessoas que via voluntariado, possam ser
promotoras desta saúde assente não na “ausência de doença”, mas sim num
“bem-estar completo”.
E é esta a razão pela qual, por
exemplo, o projeto “Quiosque da Saúde” existe como existe, pois a própria
presença de um pequeno local, onde é possível ter contacto com a saúde de forma
simples e fácil, na normalidade dos nossos dias, é também um símbolo de
bem-estar e segurança na comunidade, sobretudo junto de pessoas idosas. “Se
precisar, é só ir ali” tal como ir comprar uma revista ou jornal num quiosque.
Mas também se não precisar, posso ir lá dar uma “conversinha”. É uma forma
poderosa de bem-estar e prevenção, mas também, por vezes, um “salva vidas” como
já aconteceu numa e outra ocasião onde se evitaram problemas sérios destinados
à fatalidade.
Já na rua, junto de pessoas em
situação de sem-abrigo, ou em casa de pessoas idosas, as necessidades são
muitas, mas a base é sempre a mesma, um bom contacto com as pessoas. No
primeiro ano do “Saúde na Rua”, lembro-me de uma história marcante de uma idosa
que se encontrava a dormir no Terreiro do Paço, quando este era ainda casa para
muitas pessoas. Ela pediu para falar com um médico (ainda o Alexandre) sabendo
que tínhamos um na equipa. Assim foi, quando ele se libertou da pessoa com quem
estava, dedicou cerca de uma hora a esta senhora. Num espaço um pouco mais
escondido, junto de uma porta, tiveram alguma privacidade para observação e
conversa. Quando esta senhora de rosto rugoso e cansado saiu de lá, parecia
outra, com um sorriso e bem-estar nada semelhante ao primeiro encontro. Então,
quando o Alexandre veio ter comigo, perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ele
respondeu: “Nada, ela só precisava de conversar”.
http://visao.sapo.pt/iniciativas/visaosolidaria/opiniaosolidaria/duartepaiva/2016-01-04-Voluntariado-em-saude
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