quinta-feira, 10 de novembro de 2016
domingo, 6 de novembro de 2016
O que é proibido
dizer a um doente zangado ?
"Acalme-se !"
Má
comunicação com doentes em situações complicadas cria dificuldades nas unidades
de saúde. Nova sociedade quer resolver o problema melhorando o ensino de
médicos e enfermeiros.
O que é que não se deve dizer a um doente
zangado? “Acalme-se”, exemplifica Irene Carvalho, a presidente da recém-criada
Sociedade Portuguesa de Comunicação Clínica em Cuidados de Saúde (SP3CS), que
destaca a importância da empatia e da humanização na medicina e em todas as
profissões que implicam contacto com doentes.
Socorrendo-se da experiência e de estudos
feitos nos Estados Unidos — onde estas questões merecem grande atenção —, Irene
Carvalho sustenta que as queixas por falhas
na comunicação médico-paciente são muito mais frequentes do que as
reclamações devidas a incompetência técnica. “A maior parte das queixas têm que
ver com problemas de comunicação”, corrobora o enfermeiro Carlos Sequeira, que
acaba de lançar o livro Comunicação clínica e relação de ajuda.
Saber interagir com doentes em situações
complicadas e saber como dar más notícias não implica apenas ter intuição
e bom senso. Há “competências básicas” que devem ser ensinadas aos
profissionais de saúde, atualmente
muito pressionados pela falta de tempo, defende Irene Carvalho que criou a
nova sociedade científica em conjunto com outros profissionais (médicos,
enfermeiros, farmacêuticos, terapeutas, entre outros).
Efeitos nefastos da modernização da medicina
Com a tecnicização e a informatização do
conhecimento e toda a especialização verificada nos
últimos anos, os
profissionais de saúde — e os médicos sobretudo — estão muito focados na cura,
nos órgãos, nos mecanismos fisiológicos, sublinha a psicóloga. Ora se esta
estratégia foi ótima para o desenvolvimento da medicina, acabou por ter alguns
efeitos secundários nefastos na relação com os pacientes, considera.
Se os doentes reclamam por causa de falhas
de comunicação, os profissionais de saúde também se queixam, sobretudo de ter
cada vez menos tempo, de tal forma estão pressionados para usarem computadores
e prestarem atenção aos indicadores. Em Espanha, recorda Irene Carvalho, “os
médicos de família têm sete minutos para estar com os doentes”. Em Portugal,
este limite não existe, mas já houve várias tentativas para impor tempos
máximos, lembra o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva.
Também não será necessário tanto tempo
assim. Numa consulta normal, 25 minutos serão suficientes, acredita a
psicóloga. Como? É possível gerir de forma mais adequada o tempo disponível,
evitando questões de última hora — que contribuem para o arrastar das consultas
—, ou usando técnicas para controlar o discurso dos doentes. Um exemplo:
quando o doente está sistematicamente a repetir as mesmas coisas é porque
entende que o profissional não está a ouvir; neste caso, a técnica é ir
resumindo aquilo que ele vai dizendo.
“Os médicos têm consciência da importância
da comunicação, o consentimento informado trabalha esta questão, mas é bom que
haja um fórum em que tudo isto se discuta. Por vezes o cansaço faz com que
sejam menos felizes na comunicação com os doentes. Mas a verdade é que sem
tempo não há uma boa comunicação”, avisa o bastonário.
Em 2014, o Tribunal de Contas (TdC)
desencadeou grande polémica ao calcular que, se se assumisse como “razoável” o
tempo de 15 minutos para o atendimento, seria possível fazer mais 10,7 milhões
de consultas por ano, e ficaria resolvido o problema da falta de médicos de
família em Portugal . “Foi um momento menos feliz do TdC, reduziu os doentes a
matemática”, lamenta José Manuel Silva.
Em Portugal, não se sabe o que se passa nos
consultórios. Mas, de novo nos EUA, um estudo permitiu perceber que os médicos,
em média, tendem a deixar falar os doentes só 18 a 23 segundos, nas declarações
iniciais. Resultado: 54% das preocupações ficam por abordar e o problema é de
tal forma sensível que os médicos norte-americanos alvo de mais reclamações são
obrigados a fazer cursos de comunicação, sintetiza Irene Carvalho. “É toda
outra mentalidade".
Médicos nem se identificam
Frisando que, em Portugal, “a informação
fornecida ao doente é minimalista e muitas vezes os profissionais nem sequer se
identificam”, Carlos Sequeira insiste que investir na comunicação clínica nem
sequer implica custos acrescidos. “Não são necessárias máquinas, mas apenas
sensibilidade, disponibilidade e recursos humanos”, elenca. Com a “crescente
desumanização” nos serviços de saúde, os doentes ainda são muitas vezes menosprezados
e eles próprios, por razões culturais e de falta de literacia, não reclamam.
“Muitas pessoas ficam doentes por causa das palavras ou da falta delas”,
enfatiza o enfermeiro, para quem a “empatia e a assertividade” são fulcrais
neste processo.
Mas em Portugal pouco se sabe sobre estas
matérias. Conhecidos são os números de milhares de reclamações que em cada ano
são apresentadas por doentes e seus familiares. Os motivos aparecem, todavia,
agrupados em subtipos que não permitem perceber o peso e a dimensão dos
problemas de comunicação.
Por isso é que nos últimos anos as escolas
que ministram cursos de saúde, sobretudo as faculdades de medicina, passaram a
incorporar disciplinas de comunicação clínica, como acontece na Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto, onde Irene Carvalho é professora, e em
várias outras faculdades do país. Uma das tarefas prioritárias da nova
sociedade é justamente fazer um levantamento do que se ensina nas escolas com
cursos de saúde e criar um currículo básico que todos possam integrar.
O que se ensina nestas disciplinas? Por
exemplo, a entrevistar os doentes, porque aprender a começar e a encerrar a
conversa é fulcral. São feitas simulações com alunos, com atores contratados, e
mais tarde com doentes, em duas salas contíguas designadas como “laboratório”.
Os professores observam para depois corrigirem o que está a ser feito de errado
durante a entrevista.
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/o-que-e-que-nao-se-dev-dizer-a-um-doente-zangado-acalmese-1750121?page=-1
E nós, voluntários do campo da saúde, que dizemos aos doentes quando os encontramos zangados? Ou doridos. Ou angustiados. Que lhes dizemos nós? Ou apenas estamos - em presença efetiva e total, claro. Face ao texto que aqui se reproduz, convido-vos a que façais o exercício da reflexão sobre o tema. Também nós, voluntários, somos importantes para os doentes. Somos parte da comunidade da Unidade de Saúde. Somos aqueles e aquelas que temos todo o tempo do mundo, simplesmente para estar. Se conseguirmos fazer isto, bem feito, creio que já estaremos a prestar uma excelente ajuda à pessoa que sofre, ao nosso irmão ou à nossa irmã, afinal cidadãos como nós que apenas se encontram em situação de fragilidade quase sempre total.
Porto, 6 de novembro de 2016, João António Pereira, presidente em exercício, da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde.
sábado, 5 de novembro de 2016
O VOLUNTARIADO
PODE SER MÃO DE OBRA GRATUITA!
Há dias, em razão do desempenho do cargo,
participei como convidado numa iniciativa do âmbito da economia social e das
coletividades. Aí foi feita alguma analogia entre a atividade organizativa, do exercício
dos poderes; e da gestão ou de administração das pessoas coletivas de direito privado
sem finalidade lucrativa, nomeadamente as na forma de associação, com as entidades
do poder local, freguesias e municípios, pessoas coletivas de direito público;
sendo mesmo realçada a importância da participação nos Órgãos Sociais e na vida
das coletividades, que por isso mesmo, promove e possibilita uma das melhores
aprendizagens ao nível da participação cívica dos cidadãos na vida das
Organizações da Sociedade Civil, resultando daí, o surgimento de potenciais e
bons candidatos aos Órgãos do Poder Local. Até aqui tudo bem. Mas eis senão
quando hoje…
Em www.zap.aeiou.pt
dou de caras com a peça jornalística intitulada “Há 38 mil desempregados a trabalhar por 80 euros por mês, nas
autarquias”. E diz mais: “As câmaras municipais tiveram ao seu serviço
cerca de 38 mil desempregados, colocados pelos Centros de Emprego, a trabalhar
por uma bolsa mensal de pouco mais de 80 euros, ao longo de 2015. As autarquias
assumem que são funcionários essenciais e os sindicatos falam em “escravatura
dos tempos modernos”. E
adianta também que “a situação foi
denunciada pelo Bloco de Esquerda (BE) e é reportada pela TSF,
que avança que, durante 2015, o Instituto do Emprego e Formação Profissional
(IEFP) colocou 38 mil pessoas a trabalhar nas autarquias através dos
chamados Contratos Emprego-Inserção (CEI).”
Outra vez o Bloco
de Esquerda. Ou outra vez, se anda a falar de emprego, de desemprego e do uso
de mão de obra barata ou gratuita? Então é assim: os números que são avançados e
por quem os publicitou, são dados como oficiais e como coincidentes com o número de
desempregados (38 mil) que os Centros de Emprego colocaram em 2015, ao abrigo
dos chamados Contratos de Emprego – Inserção (CEI’), mas não apenas nas Autarquias
Locais. Nestas, terão sido colocados 12 mil; mas nas IPSS’ – Instituições Particulares
de Solidariedade Social, foram muito mais. Terão sido colocados 18 mil. Se se fica a saber que no referido ano, os
desempregados colocados ao abrigo dos CEI terão representado “mais de um terço dos 110 mil funcionários
que trabalham de forma tradicional” para as autarquias, já o mesmo não se pode dizer relativamente às IPSS' porque não existe informação a esse respeito.
Estaremos perante
uma situação que não se pretende, e que tem alguma particularidade que
interessa apontar. Ou seja. As Organizações representativas dos trabalhadores
alegam que os CEI’ “são usados de forma
abusiva”. A Provedoria de Justiça tem vindo a acusar o “Estado de abusar do
trabalho de desempregados (…). Continua a receber queixas (…) e encontra-se a
acompanhar o assunto”, tendo já mesmo aberto procedimentos de queixa. Por
outro lado, para as autarquias, apesar de admitirem “que os números revelados (…) são altamente significativos", (não se podendo portanto, esconder o sol com a peneira) também admitem que “estas pessoas fazem
falta às autarquias e, se tivessem sucesso nas funções, devia ser possível contratá-las
findo o CEI”, já que, também reconhecem, que os “CEI foram criados com o objetivo de minorar a subida exponencial do
desemprego e manter as pessoas ativas mesmo sem um trabalho formal.”. Mas…
o STAL – Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local vem dizer “que estes desempregados tapam
"necessidades permanentes" e trabalham em inúmeros tipos de funções
nas autarquias.”, antes desempenhadas pelos chamados “trabalhadores tradicionais”. E que se passa no que respeita aos
CEI’ nas IPSS’? Mais uma vez nada sabemos. Mas que pode ser (ou vir a ser) terreno fácil para
o uso (mau uso) dos desempregados em situação de CEI, lá isso pode. Não estamos imunes a
isso.
E agora pergunto:
mas porquê esta abordagem acerca dos CEI’? Se bem se recordam, também da parte
do BE, a sua coordenadora afirmou mais ou menos em abril deste ano, que “o trabalho voluntário é uma treta”,
altura em que eu, também neste local, escrevi que a Dra. Catarina Martins não havia
afirmado que o “voluntariado é uma treta”,
e mostrei preocupação quanto ao impacto da afirmação (a efetivamente feita)
para o voluntariado. Pois é. É que as coisas podem andar todas ligadas e volta
e meia, sejam eles desempregados, sejam CEI’ ou ASU’ (Atividades Socialmente
Úteis), sejam mesmo os voluntários dos muitos e de qualquer setor, podem
tornar-se em presas fáceis no que toca a usar mão de obra a baixo custo ou
gratuita. E quando falo gratuita estou mesmo a referir-me aos voluntários. E
mesmo aos voluntários do campo da saúde? Claro que sim.
E é verdade (ou
pode ser verdade). Em todas as situações que antes referi, os voluntários,
podem ser mesmo a presa mais fácil quer por razões financeiras quer, talvez
mais vezes, por razões sobretudo ligadas ao desejo de fazer o bem e não se dar
conta que esse bem (ou essa função) é típica do “trabalhador tradicional” e não
e de qualquer voluntário, embora a hipótese de confusão de papéis seja mais
frequente ao nível das funções de operacionalidade (assistentes operacionais) ou
auxiliares.
Mas em todas as
situações. Seja nas Autarquias, seja nas IPSS’, seja em outras Organizações da
Economia Social… todos nós voluntários, coordenadores, técnicos e dirigentes,
devemos (temos que) estar atentos ao que se passa, por razões de respeito por
todos e por cada colaborador, na sua especificidade e na sua diferença, mas, e
muito mais, pelo respeito que a todos obriga que se tenha pela pessoa, quer
seja em contexto organizacional quer não. Se queremos humanizar temos que ser humanos.
Temos que ter posturas e práticas que dignifiquem, não apenas as Organizações,
mas, e acima de tudo, as pessoas, voluntários e beneficiários.
E isso passa muito e também, pelo cumprimento da legislação sobre o voluntariado que é muito clara quando se refere ao princípio da complementaridade e diz “o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.”. Ou seja, o voluntário não executa o que executa o “trabalhador tradicional”. Está para além daquele. Contrariamente ao que canta a Adelaide Ferreira, o voluntário, (na maioria das situações) não tem o papel principal. Complementa o trabalho daquele. Aporta algo mais (o que não é mensurável) ao trabalho daquele e com isso faz com que o resultado final seja superior ao que seria se não existisse o contributo do voluntário.
E isso passa muito e também, pelo cumprimento da legislação sobre o voluntariado que é muito clara quando se refere ao princípio da complementaridade e diz “o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.”. Ou seja, o voluntário não executa o que executa o “trabalhador tradicional”. Está para além daquele. Contrariamente ao que canta a Adelaide Ferreira, o voluntário, (na maioria das situações) não tem o papel principal. Complementa o trabalho daquele. Aporta algo mais (o que não é mensurável) ao trabalho daquele e com isso faz com que o resultado final seja superior ao que seria se não existisse o contributo do voluntário.
Afinal a Lei é
tão clara e o seu cumprimento é tão fácil. Basta a firme vontade (boa vontade)
e a implementação de boas políticas e bons programas de voluntariado? Não. Ou
melhor: sim, isso é importante. Mas não basta.
É também necessário que cada vez mais seja exercida verdadeira vigilância (para não dizer fiscalização) sobre a atividade do voluntariado. Até a algum tempo não se sabia a quem competia esse papel. Mas hoje sabe-se. A fiscalização do cumprimento da legislação do voluntariado é atribuição da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho. Que cumpramos e não tenhamos receio de ser fiscalizados. Mesmo no campo da saúde.
É também necessário que cada vez mais seja exercida verdadeira vigilância (para não dizer fiscalização) sobre a atividade do voluntariado. Até a algum tempo não se sabia a quem competia esse papel. Mas hoje sabe-se. A fiscalização do cumprimento da legislação do voluntariado é atribuição da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho. Que cumpramos e não tenhamos receio de ser fiscalizados. Mesmo no campo da saúde.
Porto, 5 de
novembro de 2016, João António Pereira, presidente (em exercício) da Direção da
Federação Nacional de Voluntariado em Saúde
Fonte: http://zap.aeiou.pt/ha-38-mil-desempregados-a-trabalhar-por-80-euros-por-mes-nas-autarquias-136671
terça-feira, 1 de novembro de 2016
Estas conversas
são o abrigo de quem está na rua
MARGARIDA DAVID
CARDOSO
30/10/2016 - 09:00
A
Associação Conversa Amiga surgiu há dez anos com o objetivo de combater a
exclusão e a solidão de quem dorme nas ruas de Lisboa. E fá-lo conversando.
Hoje, dá às pessoas que acompanha um local próprio e seguro, companhia e saúde.
Está há um ou dois dias atracado no
terminal de passageiros de Santa Apolónia. “Uns vão, outros vêm”, perde-se a
conta. R não se cansa de admirar o enorme cruzeiro. Gostava muito de entrar num
destes. Talvez fazer um cruzeiro.
Será agora a sua vez? Afinal não. “Eu tenho
tempo, quando a Joana puder”, afirma. R tem 33 anos e uma história dura que o
trouxe para a rua. Vive em situação de sem abrigo há um mês, o suficiente para
os seus caminhos se terem cruzado com os da Associação Conversa Amiga (ACA).
Esta é uma terça-feira como todas há mais
de dois anos. Joana Teixeira, psicóloga comunitária, chega às 12h30 a Santa
Apolónia para responder às dúvidas das pessoas em situação de sem abrigo que a
associação acompanha. “Às vezes vimos só conversar.” Antes esteve em Arroios,
desde as 10h30.
- Bom dia, está tudo bem? Amanhã vai lá à
consulta?
Joana conhece os horários dos compromissos
de quem acompanha. Sabe-lhes os nomes, os hábitos e as histórias de cor.
“Começamos muitas vezes a falar sobre coisas triviais e a conversa
desenrola-se. Conversamos sobre coisas que nos levam a ir fazer o cartão
do cidadão, ajudar nos pedidos de rendimentos, articular com a segurança social
ou pedir um quarto.” Dar a conhecer os direitos de quem acha que os perdeu ou
não sabe que os tem é uma grande parte do seu trabalho.
Esta terça-feira, já combinou com três
pessoas tratar da renovação do cartão do cidadão e na quinta-feira lá estará
com M para tratarem da sua entrada num centro de alojamento. Mas estas conversas
não se ficam pelo círculo informal. A ACA encaminha os casos – que sinaliza nas
acções de rua – para o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA),
onde Joana se torna formalmente a gestora de caso. Actualmente, acompanha 45
pessoas.
Quando chega a Santa Apolónia, um grupo de
cerca de dez pessoas espera. Guardam a vontade de falar.
A conversa é a base de todo o
trabalho. “Às vezes pensamos erradamente sobre as coisas que eles
precisam.” Como podem saber o que se precisa quem vive na rua, sem ouvir quem
lá está?
Faz três anos que, destas conversas,
perceberam a dificuldade que estas pessoas tinham em guardar os seus
pertences. Daí surgiram os cacifos solidários, destinados a quem dorme na
rua – para já, perto das zonas de Arroios e Santa Apolónia. São 24 cacifos,
existentes desde Outubro de 2013, numa iniciativa apoiada pela Câmara Municipal
e por uma campanha de crowdfunding.
Até ao final do ano, a associação espera
ter mais 36 na rua, para
completar a rede de 60 cacifos na cidade. Doze no Cais do Sodré,
outros tantos no Oriente e no Rossio – nestes dois últimos locais o
impasse com as juntas de freguesia mantêm-se.
Como destaca Duarte Paiva, presidente da
ACA, os cacifos são um “local seguro e digno” que permite ampliar a rede de
apoio: “Este projecto permite-nos ter um acompanhamento regular com cada vez
mais pessoas e vimos que mais de 40% dos casos saíram da rua”. Quem os utiliza
assina um contracto e compromete-se, a todas as terças-feiras, vir sentar-se à
conversa com as psicólogas.
Estes armários amarelos nunca são
revistados e as chaves são trocadas sempre que mudam de dono. Nos atuais 24
cacifos, já passaram 47 pessoas.
Para o sr. A, de “50 e tal anos”, os
cacifos foram “uma ideia mágica”. É lá que guarda “a casa” antes de ir
trabalhar. Assim, durante o dia, nem se lembra que dorme na rua. “Assim sei que
as minhas coisas estão seguras e limpas. Ninguém rouba, nem a Câmara tira”.
No sábado passado, quando os voluntários
chegam para conversar, o sr. A sorri e farta-se de sorrir. Esta não parece uma
noite triste.
Um amigo
Era Natal, daqueles frios em que a
solidariedade também nos aquece. Duarte Paiva, na altura estudante de
arquitectura, foi entregar comida e roupa na rua. Percebeu aí: “Estas pessoas
têm comida e roupa, mas isso não lhes chega.”
Nessa altura, veio-lhe à memória um senhor
que dormia na rua, junto à casa onde morava, nos Açores.Tinha oito anos quando
decidiu ir entregar-lhe comida: “Ele perguntou-me se o que levava era pão.
Olhou-me com tal desdém que eu deixei o saco no chão e fui a correr para casa.
Se calhar, eu dar-lhe pão era uma humilhação. O que é que ele queria?”
A pergunta cresceu com Duarte e, naquele
Natal, foi capaz de lhe dar uma resposta: “Percebi que havia uma coisa muito
importante que eu tinha para dar: o meu tempo.” Criou um blogue e convidou
outros a virem conversar, nas ruas de Lisboa, com as pessoas que encontrassem a
dormir na rua. Oferecia-lhes chá como pretexto para se sentar à sua beira.
Percebeu que a conversa as satisfazia mais do que o alimento.
Onze anos depois, é ainda assim que
funciona “Um sem abrigo, um amigo”, um dos sete projectos da ACA. “Há muitos
grupos que distribuem comida e roupa. Todos essenciais, mas a conversa também o
é. Nenhuma associação substitui a outra”, afirma.
Dois sábados por mês, às 20h, as quatro
equipas de voluntários segue para a rua. Para Santa Apolónia, Oriente, Arroios
e outra para o Cais do Sodré. O objectivo? Combater a exclusão e a solidão na
rua. Compreender as pessoas. Ouvi-las.
“No início, às vezes, berram connosco. Só
às vezes”, ri-se Duarte. “Mas à medida que vamos construindo esta relação de
paridade, as pessoas conversam e abrem-se connosco.” Tudo começa com o contacto
simples. A horizontalidade na fala, no modo de tratar o outro. Os laços que se
criam são o grande triunfo da acção nas ruas.
Foi a partir deste projecto, criado um ano
antes, que em 2006 surgiu a ACA. Hoje, a associação tem cinco pessoas em
trabalho a tempo inteiro: Duarte, o presidente, Joana Teixeira, a psicóloga
comunitária, Joana Guerreiro, psicóloga clínica, Joana Feliciano, na
comunicação e marketing, e Diana Silva, enfermeira
nos Quiosques da Saúde.
Aos voluntários exige-se brio.
Responsabilidade. Humanidade. Ninguém sai para a rua sem passar pela selecção e
formação, 20 horas no total. Há uma “lição” que Joana olha com “mais carinho”:
porque devem dizer “pessoa em situação de sem abrigo” e não “sem abrigo” -
porque “a condição de sem abrigo não as define como pessoas”, explicava mais
tarde Guilherme Pereira, de 24 anos. Um dos 43 voluntários do projecto.
A casa de Santa Apolónia
- Limpem os pés antes de entrar que ainda
hoje aspirei – graceja o sr. J. Não deixa que os voluntários se sentem no chão.
“Tenho muitos sofás”, diz, ao distribuir cobertores.
São quatro voluntários no grupo de Santa
Apolónia deste sábado: Guilherme, nutricionista, Maria José Felgueiras,
professora de inglês, Mónica Correia, psicóloga, e Pedro Faria, médico. Noutros
grupos há também empresários, estudantes, militares. Mónica é a
coordenadora da equipa e veio de propósito para a lateral da estação para ver como
estavam o sr. J e o sr. A. Da outra vez tinham-na deixado preocupada.
O sr. J, de 45 anos, já leu o livro que lhe
levaram. E quer mais. “Claro que isto não era o que a gente queria. Mas desde
que me dêem livros, a vai-se aguentado.” Desde que não sejam de Saramago
ou José Rodrigues dos Santos, prontifica-se a acrescentar. Já deu uma boa
oportunidade a ambos, mas “quem pode gostar de Rodrigues dos Santos depois de
ler Dan Brown?”, pergunta.
Ainda há-de escrever um livro. Ele é que
diz e Guilherme concorda. “Não uma autobiografia, uma autocrítica: sobre as
peripécias.” Talvez também sobre as viagens e sobre os trabalhos: no matadouro,
nas empilhadoras, nos camiões, numa grande empresa. E sobre a heroína. Depois,
sobre o vício que acabou numa das ilhas do Atlântico. Nunca mais lhe tocou.
Desde que voltou a Lisboa, pede o mesmo que
pediu nos Açores: “Não pedi rendimento, pedi um quarto.” Quer deixar o
"número 1 da Rua da Amargura.”
Os voluntários começam a conhecer-lhes as
dinâmicas - ainda que em Santa Apolónia as caras mudem com muita frequência. As
namoradas, os amigos, a literatura, o cinema, o jornal do dia. A vida como ela
é, mas na rua.
- Já vão? Fiquem para o serão – diz o sr.
J. À saída, pede aos voluntários que fechem a porta, dá corrente de ar. Também
há-de mandar consertar a janela da sua casa na rua.
Por volta das 22h, em frente à estação,
serve-se o chá de baunilha e caramelo, uns copos atrás dos outros, e desejos de
boa noite. Os voluntários seguem para o viaduto, o “Palácio de Inverno” do sr.
J e o sr. A quando a chuva insiste em cair.
- Estas são dores que não interessam nem
aos animais - conta a Pedro um outro sr. J, de 71 anos.
Cedo perceberam que havia uma falha
“urgente” a colmatar: o acesso a cuidados de saúde, ainda que primários. “A
maioria das pessoas que acompanhamos não têm acesso a um médico de família ou
não têm como se deslocar a até ele”, nota Sofia Remtula, médica e coordenadora
do projecto “Saúde na Rua”. A equipa que coordena tem quatro médicos que a cada
sábado acompanham os voluntários do “Um sem abrigo, um amigo”.
Pedro é o médico de serviço em Santa
Apolónia. Esta noite, mediu por três vezes a tensão e entregou alguns compridos
para as dores. Algumas só a conversa cura.
Já passava das 23h, a hora em que está
previsto acabarem as conversas, mas o grupo ainda tem que passar pelo outro
lado do viaduto, para ver se alguém está acordado. Sim, um outro sr. J está
desperto. Mónica pergunta sempre se se pode sentar. “Não se pode entrar sem
pedir no espaço de outra pessoa, mesmo que seja na rua”, já tinha contado.
Senta-se à conversa.
segunda-feira, 31 de outubro de 2016
domingo, 23 de outubro de 2016
8.º ENCONTRO NACIONAL
DO VOLUNTARIADO EM SAÚDE
CONCLUSÕES
Subordinado
ao tema “Da Proximidade à Globalidade”, realizou-se a 22 de outubro de 2016, em Tomar, o 8.º
Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde, com a participação de cerca de 250
voluntários, convidados, personalidades do Poder Local, da Administração
Pública, da Saúde, da Ação Social e de Organizações da Sociedade Civil; e
amigos do Voluntariado que em Portugal se desenvolve em Unidades e em
Equipamentos onde se prestam serviços e cuidados de saúde, sobretudo no Serviço
Nacional de Saúde.
O evento foi
promovido pela Federação Nacional de Voluntariado em Saúde, e organizado em
parceria com a Liga dos Amigos do Hospital de Tomar, com a Câmara Municipal da
mesma cidade e com o apoio para a comunicação, da Rádio Canção Nova; e do
Jornal e Rádio Cidade de Tomar, relevando-se ainda o contributo de voluntários,
presidente e diretores da referida Liga; e de colaboradores municipais e outros.
A todos se agradece.
Para além da
promoção de encontro anual de quantos dedicadamente servem todos os dias os
utentes das Unidades e Equipamentos de Saúde, a iniciativa teve também o mérito
de congregar preletores de excelência, que proporcionaram abordagens e
reflexões de alta qualidade acerca dos subtemas, “Quem é o meu próximo? Proximidade, justiça e responsabilidade”, “O
voluntariado de proximidade, em contexto hospitalar e na comunidade” e “Reconhecimento
das aprendizagens decorrentes do voluntariado”, contribuindo assim com os
seus saberes e prestígio, para voluntariado e voluntários mais esclarecidos,
mais formados, mais capacitados e mais aptos para desempenharem melhor o seu
papel e para satisfação das pessoas e das Organizações.
Os
participantes no 8.º Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde, declaram:
Que comungam
dos objetivos, dos conceitos e dos princípios que em Portugal dão hoje corpo e forma;
e enquadram o voluntariado organizado. Acreditam que a prática do voluntariado
é um modo possível para a vivência ativa da cidadania; e que no campo da saúde,
aquela tem papel insubstituível para a humanização, em regime de
complementaridade. Afirmam que o voluntariado é um contributo inestimável na
promoção do desenvolvimento pessoal, social e comunitário, com posturas de
cooperação interpessoal e entre Organizações, e fomento à participação direta,
ao pensamento crítico e ao interesse ativo dos cidadãos na sensibilização para
os benefícios decorrentes do voluntariado, para todos os cidadãos, com a
promoção de sentimento comum de responsabilidade, de solidariedade.
E
estabelecem as seguintes conclusões:
1.
O
voluntariado no campo da saúde, é verdadeiramente de proximidade; e caracteriza-se
por uma interpessoalidade tão próxima e comungante que promove e sugere
relações plenas de simpatia e de empatia. A autêntica proximidade, aquela que é parte da cura
e que liberta, também está no exercício do voluntariado no campo da saúde, esse
que responsabiliza a todos e que é dever de justiça e de cidadania, mas também
de compaixão e de misericórdia, estas que relevam a importância da
disponibilidade e da dádiva amorosa e sem contrapartidas. É na
proximidade que o voluntário sabe e vive em si mesmo quem é o seu próximo. São
estes encontros plenos de gestos simples que fazem sentido e têm sentido. É
esse sentido que sendo gesto de aproximação no imediato e no presente, não se
esgota em si mesmo, mas antes tece um sentido que o supera.
As mais valias e os
ganhos para todos os stakeholders, decorrentes da prática da proximidade e do
encontro no âmbito do voluntariado em saúde, são por demais evidentes e
ineludíveis; e apelam à integração dos voluntários nas equipas de trabalho, com
a necessária adaptação às diferentes realidades institucionais, comunitárias e
de prestação de cuidados.
As Organizações
Promotoras de Voluntariado no campo da saúde e seus voluntários, carecem e
requerem que para eles se dirija um outro olhar, um olhar diferente, um melhor
olhar. É necessário que o voluntariado no campo da saúde, seja visto como
parceiro verdadeiramente estratégico a nível superior. Ele é mesmo contributo
indispensável, para a realização dos objetivos das Entidades e da obtenção de
níveis superiores da qualidade dos serviços e cuidados que são prestados; e
isso deve ser reconhecido.
É necessário conjugar
competências académicas e pessoais, no sentido do aumento do desempenho e da
prestação de melhores e mais adequados serviços de voluntariado; e devem haver “novos modelos de serviços para cuidados
integrados e centrados nas pessoas: serviços domiciliários e de proximidade
mais disponíveis, com a participação das instituições de solidariedade e
voluntariado”.
2.
A
aprendizagem ao longo da vida é uma realidade e acontece em diversos contextos
sendo o voluntariado uma experiência em que acontecem aprendizagens com um
impacto relevante a nível pessoal, social e profissional. Aceita-se que se reconheçam e validem as
aprendizagens em voluntariado. Mas não se aceita que isso alguma vez possa
subverter os valores e os princípios que norteiam o voluntariado em geral e os
do campo da saúde em particular.
O reconhecimento e a
validação das aprendizagens decorrentes do voluntariado, se tem dimensão
global, também tem dimensão própria, particular e específica no campo do
voluntariado na saúde. Que a sua implementação e desenvolvimento, aconteça sim,
mas com o bom-senso e a certeza de que acrescenta valor e eleva o nível da
prática do voluntariado, no sentido do melhor serviço às pessoas, nomeadamente
aos mais excluídos dos excluídos.
Tomar, 22 de outubro de 2016
Os participantes no 8.º Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde
Aprovado por unanimidade e aclamação
Nota: a versão longa pode ser acedida em:
Nota: a versão longa pode ser acedida em:
domingo, 9 de outubro de 2016
Eutanásia:
“Há circunstâncias atenuantes que justificam a
absolvição”
Pe. José Nuno, sacerdote católico |
Padre José Nuno, o capelão português que esteve mais tempo em funções num
hospital, admite que em alguns casos os médicos que ajudem a morrer doentes
terminais não devem ser condenados. E defende ensino sobre a morte nas escolas.
Depois de 18 anos à frente da capelania do
Hospital de S. João, no
Porto, o padre José Nuno Ferreira da Silva assumiu sexta-feira o cargo de
capelão no Santuário de Fátima, onde vai criar um centro de escuta e
acolhimento e formar terapeutas capazes de responder à constatação de que a
confissão deixou de ser resposta para os que sofrem. Diz que a “total
erradicação da morte do espaço público” se tornou patogénica e que o facto de
as pessoas recusarem encarar a morte deixará buracos biográficos irremediáveis
na vida de cada um. É preciso ressocializar a morte, levá-la às escolas,
juntamente com a educação sexual. E apostar nos cuidados paliativos. Quanto à
morte medicamente assistida, admite-a em casos excecionais, mas considera que
não deve ser despenalizada.
As estatísticas mais recentes mostram que
cerca de 60% das mortes ocorrem em contexto hospitalar. O que mudou na forma
como se morre nos hospitais ao longo destes 18 anos?
Os doentes que estão a morrer começaram a
ser considerados em vez de arrumados. Na prática, isso traduziu-se na criação
de espaços adequados onde as pessoas possam estar com as suas famílias. Quando
cheguei lá, a generalidade dos óbitos era em salas de pensos, onde os doentes
eram isolados e agonizavam. E proibia-se a entrada e a permanência dos
familiares. O gatilho do meu trabalho sobre o processo de morrer no hospital,
que me deu raiva suficiente para me debruçar sobre o assunto, foi ter visto uma
mulher a ser arrastada pelos corredores pela segurança do hospital a protestar
porque não a deixavam ficar com o marido que ia morrer naquela noite. A esposa
queria ficar, toleraram-na mais uma hora para além da hora de visita, mas
depois arrastaram-na dali para fora.
Hoje as pessoas já conseguem acompanhar o
doente que está a morrer?
Conseguem. Às vezes, não são capazes. É uma
questão de capacidade, porque a cultura vigente arruma a morte, não quer olhar
para ela. Aliás, uma das coisas curiosas, e um sintoma de hipocrisia social é
que, no fim da legislatura do governo Sócrates, foram publicadas várias leis
que, à semelhança do que se previa relativamente a crianças e a pessoas com
deficiência mental, estabeleciam o direito de os doentes em estado terminal
serem acompanhados a tempo inteiro pelos seus familiares. Era uma lei fraturante,
mas de que ninguém falou. E enquanto para as crianças e para os deficientes o
direito foi depois tutelado, em relação a quem fica a acompanhar quem está
a morrer nada está previsto. E o certo é que ninguém reclama por isso. Acho que
as pessoas, por incapacidade – e isto não é um julgamento, é um lamento –
preferem que não haja as condições todas para estar, porque têm medo de estar.
Isso é batota.
Alguns autores consideram que, a partir dos
anos 50, a morte substituiu o sexo como tema tabu. Por que é que a morte
caminhou para esta espécie de não visibilidade?
Porque a redução do conceito de felicidade
ao bem-estar exige arrumar, não olhar, esquecer, ou fazer de conta que se
esquece, tudo aquilo que possa perturbar o bem-estar. E é claro que o rosto de
alguém que está a morrer rasga a máscara, diz que a felicidade não é redutível
ao bem-estar. Só que nós vamos todos no carrossel do bem-estar e por isso temos
uma incapacidade estrutural de olhar para esta realidade.
Esta transferência da morte para os
hospitais é consequência dessa incapacidade de confronto com a ideia de
finitude ou é um sinal de progresso, na medida em que traduz um maior acesso à
Saúde?
Efetivamente, a curva ascendente da
transferência da morte para o hospital coincide com a criação do Serviço
Nacional de Saúde, na década de 70. Portanto, o morrer no hospital significa,
em primeiro lugar, que a sociedade assume uma especial solicitude para com os
que estão a morrer. Esta é a dimensão positiva. Mas o fenómeno é ambivalente,
porque, ao mesmo tempo, traduz esta outra incapacidade de olhar para a morte e
de acompanhar aqueles que estão a morrer. Mas isso não se aplica só às
famílias. Na Igreja, fizeram-se as capelas mortuárias. Numa comunidade
paroquial, uma pessoa faz toda a sua vida na igreja paroquial. É lá que se é batizada,
faz catequese, a comunhão solene e o crisma. É lá que casa e batiza os filhos.
Já o funeral é na capela mortuária. A transferência do morrer não é apenas uma
questão de morrer em casa ou no hospital. É a remoção do morrer para um espaço
à parte.
Na realidade hospitalar, o que falta ainda
fazer?
Falta criar uma unidade de cuidados
paliativos. O hospital tem um serviço de cuidados paliativos, que é dos maiores
e melhores do país, mas ainda não há uma unidade de internamento em cuidados
paliativos que é absolutamente necessária, também por outra razão: o São João é
um hospital universitário e se a morte está nas mãos dos profissionais de saúde
temos que formar os futuros médicos e os enfermeiros para a naturalidade da
morte. É no processo educativo que se começa a desatar este nó. E nem vale a
pena falar dos assistentes operacionais que são completamente excluídos do
processo formativo e eles têm uma proximidade aos doentes que não pode ser
ignorada. Eu intervim em vários processos em que os doentes souberam que
estavam a morrer pelos auxiliares, às vezes em conversas acidentais entre eles.
Os cuidados paliativos são a resposta para
a necessidade de ajudar os que estão a morrer?
Os cuidados paliativos são, não só o modo adequado de ajudar as pessoas no processo do seu morrer, como lugares de emergência de uma outra cultura que olha e aceita a naturalidade da morte. Nós transformamos a morte numa realidade artificial, medicamentalizamo-la desritualizamo-la, mas a morte é natural. E qual é o olhar original dos cuidados paliativos? É aceitar a naturalidade da morte. E a minha esperança é que os cuidados paliativos se desenvolvam o suficiente para serem uma fonte de regeneração da própria medicina, que não é uma luta contra a morte, mas uma luta a favor da vida e de uma vida vivida ao máximo, também quando se está a morrer. Viver ao máximo quando se está a morrer não é encharcar o doente de medidas invasivas e de medicação que impede que a morte aconteça num dia para acontecer dois dias depois.
Os cuidados paliativos são, não só o modo adequado de ajudar as pessoas no processo do seu morrer, como lugares de emergência de uma outra cultura que olha e aceita a naturalidade da morte. Nós transformamos a morte numa realidade artificial, medicamentalizamo-la desritualizamo-la, mas a morte é natural. E qual é o olhar original dos cuidados paliativos? É aceitar a naturalidade da morte. E a minha esperança é que os cuidados paliativos se desenvolvam o suficiente para serem uma fonte de regeneração da própria medicina, que não é uma luta contra a morte, mas uma luta a favor da vida e de uma vida vivida ao máximo, também quando se está a morrer. Viver ao máximo quando se está a morrer não é encharcar o doente de medidas invasivas e de medicação que impede que a morte aconteça num dia para acontecer dois dias depois.
O que acha da proposta sobre a morte
assistida?
Acho uma péssima proposta. Compreendo as
razões, tendo em conta este fundo cultural de que estivemos a falar, e
acrescentando a este fundo cultural uma outra dimensão que é a nota
profundamente individualista da cultura contemporânea. Agora a minha atitude em
relação a isto é que a morte de uma pessoa é terreno sagrado – e não falo no
sentido religioso - e em terreno sagrado a gente descalça-se. Ora, neste debate
em torno da morte assistida está demasiada gente a entrar de chancas, quer de um
lado quer do outro.
Posto de parte esse ruído, as pessoas devem
ou não ter o direito, legalmente constituído, de definirem a sua própria morte
e serem ajudadas nisso?
Na sociedade em que estamos fala-se muito
em direitos e esquecem-se os deveres. A questão que se coloca aqui é se o
Estado, enquanto representação da sociedade, tem o dever de responder
positivamente a quem pede para ser ajudado a morrer. Com tudo o que isto
encerra, porque a morte assistida medicamente (seja por eutanásia seja por ajuda ao suicídio) é uma
mudança de paradigma.
O Estado tem esse dever?
Não tem esse dever nem pode reivindicá-lo. O dever do Estado é
respeitar a vida dos seus cidadãos e proporcionar todas as condições para que
os seus cidadãos vivam o mais humanamente possível.
Numa situação em que um doente não tenha perspetivas
que não sejam de sofrimento e morte, qual deve ser a resposta do Estado?
Proporcionar-lhe todo o conforto que exista. E por isso volto
ao discurso da hipocrisia social: no Hospital de São João um doente pede uma
consulta de cuidados paliativos, mas o serviço, que é dos maiores e dos
melhores do país, é incapaz de responder a esse pedido porque tem listas de
espera e, muitas vezes, quando responde já o doente morreu. E é desta realidade
que temos de nos ocupar antes. Há pessoas que pedem para ser ajudadas a morrer,
ou que lhes deem a morte, e fazem-no convictamente, com uma história de vida
que justifica isso. Agora isto tem de ser polido com outra realidade que é a
saber se o Estado tem ou não o dever de fazer isto. Por outro lado, estas
situações não podem deixar de ser exceção.
E nessas situações de exceção qual deve ser
a resposta?
A resposta tem de ser “Nós não matamos, a lei é esta. O Estado
não mata nem responde positivamente a quem pede para morrer”. Mas há situações
de exceção e os organismos do aparelho do Estado têm a obrigação de ter para
com essas pessoas uma atenção e uma proximidade excecionais. E as pessoas
envolvidas no processo, ou outras que são chamadas a envolver-se, podem,
naquelas circunstâncias concretas, chegar à conclusão que essa ajuda deve ser
dada. Mas isso não pode deixar de ser um crime. Um crime que em sede de
julgamento se vai perceber que tinha todas as circunstâncias atenuantes
possíveis, o que resulta numa absolvição.
Mas isso implicaria que os profissionais de
saúde envolvidos tivessem de se submeter a todo um outro processo em sede
judicial.
Exatamente. De modo a impedir que isto se
tornasse usual. Porque a sociedade está a evoluir desumanamente, isto é, estão
a ser de tal maneira postas de lado franjas cada vez maiores da população que
cada vez haverá mais pessoas a pedir que as matem ou que as ajudem a morrer. A
minha questão é saber qual é o dever do Estado em relação a estas pessoas:
ajudá-las a morrer ou ajudá-las a preservar razões para continuar a viver?
Mas admitindo, como admitiu, que há
situações excecionais em que a pessoa deve ser atendida no pedido de que a
ajudem a morrer, o mais certo é que o médico se recuse a fazer algo que não
está previsto na lei.
Por isso é que falava há bocadinho das
pessoas envolvidas ou chamadas a envolver-se, porque pode acontecer que os
médicos e enfermeiros diretamente implicados não o queiram fazer por uma
questão de consciência.
Causa-me alguma estranheza o seu
raciocínio. Admite que sim, que ela pode ser pertinente nalgumas circunstâncias
excecionais, mas não quer isso previsto na lei.
Há biografias nas quais se consegue
enquadrar o pedido de morrer, são situações de exceção. E as situações de exceção
têm que ser tratadas sem as esvaziarmos do seu carácter de excecionalidade.
Mas se mantivermos a exceção na ilegalidade
cria-se uma série de problemas a quem a admite.
Mantém-se na exceção o seu carácter de excecionalidade.
E a sociedade debruça-se judicialmente sobre cada concretização da exceção e
essa exceção só se justifica quando estão reunidas todas as circunstâncias que
funcionam como atenuante para, em sede de julgamento, haver uma absolvição.
Esse escrutínio judicial deve ser
feito a posteriori?
Deve incidir só sobre situações acontecidas. Agora prever
anteriormente que o Estado tem o dever de responder ao pedido de matar, não.
Isso dissuadiria muitos profissionais de
saúde.
Também não quero acreditar que um pedido a
um profissional de saúde para que ajude alguém a morrer, seja assistindo a um
suicídio seja eutanasiando, se possa transformar numa coisa massiva. Isto é,
não é necessário que muitos profissionais de saúde se deixem dissuadir por
isto. Acho que as coisas se devem manter na dimensão que têm. E o que estamos a
assistir na sociedade portuguesa é ao empolamento de algumas destas questões.
Estou a tentar encontrar uma gaveta para
arrumar isto: despenalizava-se, descriminalizava-se, continuava a ser crime mas
ficava sem pena?
Não é despenalizar, é dizer que tem pena
mas que há circunstâncias atenuantes que retiram a pena. Mas a determinação das
circunstâncias atenuantes é feita, como em relação a todas as coisas que são
crime, em sede de julgamento.
Aquilo que me defende é nesse sentido,
admite que se faça na tal excecionalidade que desenhou mas continua a ser
crime, suscetível de uma investigação.
E de uma penalização. Mas é como digo, uma situação
em que se reúnam todas as condições que justifiquem que a situação aconteça, em
sede de julgamento não há pena, há circunstâncias atenuantes que justificam a
absolvição. Não pode ser confiado ao Estado o direito ou o dever de administrar
a morte a pedido e não pode ser pedido ao Estado o dever de ajuizar sobre como
isso é feito. Em termos de prática e da minha perceção da realidade, o que lhe
posso dizer é que isto não é fácil. Mas nada que tenha a ver com a morte é
fácil. Aliás, nada do que tem a ver com a substancia da vida é fácil. Tudo é
árduo.
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
MARIA TERESA SALGADO…
… UMA MULHER DE (DA) ESPERANÇA!
Dra. Maria Teresa Salgado de Morais |
Vinte e seis de setembro, é uma data
importante na vida de uma pessoa, na vida de uma família, na vida de uma
comunidade de irmãos, na vida do grande movimento que é o Voluntariado que se
realiza no campo da saúde; e para a Federação Nacional de Voluntariado em
Saúde. Falo da Professora Doutora Maria Teresa Cortez Salgado de Morais que
inesperadamente deixou o mundo dos vivos a 26 de setembro de 2005, “apesar dos seus setenta e oito anos cheios
de vida, de força, de juventude, de ternura, de alegria e de esperança.”,
como alguém afirmou em peça jornalística publicada na altura.
Segundo afirmou Dom Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto, na cerimónia das exéquias fúnebres, “a Professora Doutora Maria Teresa Salgado Morais é uma das pessoas que nos ajuda a reavivar a fé, a compreender o que é cultivar a esperança e deixa para o mundo um apelo a essa mesma esperança.”, cuja postura, repleta de amor e de tal “simplicidade que não deixava ninguém indiferente. O seu sorriso de bondade e a forma como acolhia mostrava-nos o conteúdo do seu bondoso coração.”
Segundo afirmou Dom Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto, na cerimónia das exéquias fúnebres, “a Professora Doutora Maria Teresa Salgado Morais é uma das pessoas que nos ajuda a reavivar a fé, a compreender o que é cultivar a esperança e deixa para o mundo um apelo a essa mesma esperança.”, cuja postura, repleta de amor e de tal “simplicidade que não deixava ninguém indiferente. O seu sorriso de bondade e a forma como acolhia mostrava-nos o conteúdo do seu bondoso coração.”
Para além de ter sido Professora de
Físico-Química no Instituto Superior de Engenharia do Porto e membro
da Comissão Nacional para a Humanização e Qualidade dos Serviços de Saúde e da Comissão
Nacional da Pastoral da Saúde, a Doutora Maria Teresa, lançou as bases e a
estrutura do que é hoje o Secretariado Diocesano da Pastoral da Saúde do Porto
que surgiu em 1983, onde teve responsabilidades de direção; implementou e
presidiu à Associação Voluntariado do Hospital de São João – Porto “onde
se deu inteiramente aos outros, sendo este hospital a sua segunda casa.”
A Doutora Teresa foi altamente considerada pelo Conselho de Administração do Hospital de São João que em tempo, dirigindo-se o aos voluntários, lhes disse da sua (do CA) “admiração por terem resistido ao desgaste da vossa generosidade. Às vezes dão-se e não são bem compreendidos». O CA terá salientado ainda o papel “da espetacular mulher que foi a Dr.ª Teresa Salgado que ajudou a Associação a resistir à erosão sem nada receber em troca”.
Ainda Dom Armindo, viria a salientar o
papel de voluntária da Doutora Teresa, afirmando que “No Hospital de S. João foi uma pioneira, uma apostola do voluntariado.
Voluntariado que vinha da paixão da solidariedade, da paixão pelas necessidades
dos outros.”, porque segundo ele, “estar
ao serviço num hospital é sobretudo ser um apelo, uma nota de esperança para os
que sofrem e estão em risco de perder a esperança. O entusiasmo na entrega
total ao voluntariado com a determinação própria de quem tem ideias e as
justifica pelas iniciativas. Apostolado que faz discípulos, o voluntariado
atingiu uma grande importância a nível nacional e ultrapassou fronteiras.”
A Federação Nacional de Voluntariado em
Saúde - FNVS também é fruto do entusiasmo, da entrega e do dinamismo da Doutora
Teresa, que sempre em harmonia com o seu marido, Benjamim de Morais, dinamizou
ou ajudou a criar inúmeras Organizações de voluntariado em muitas Unidades de
Saúde do Serviço Nacional de Saúde, participou ao mais alto nível do Estado e
aí defendeu o voluntariado no campo da saúde e de algum modo representou os
voluntários, essa multidão que ainda ninguém conseguiu contar.
A FNVS “nasceu” em maio de 2007, mas esse
facto foi o resultado do sonho sonhado pela Doutora Teresa e por quem a
circundava na atividade, nomeadamente por quem, olhando, não apenas para o
passado, mas sobretudo para o futuro, teve a coragem de, contra algumas marés
vivas ou revoltosas, rasgar os mares e seguir em frente em direção à
organização global do voluntariado em saúde de Portugal. Já somos muitos, mas
queremos ser mais. Somos 53 Organizações de voluntariado da saúde, o (talvez) equivalente
a um universo de cerca de 25 mil voluntários.
Embora possam existir diversos caminhos para que se atingir o mesmo objetivo, a verdade é que como a Doutora Teresa, continuamos a acreditar que este é o caminho. A Federação Nacional de Voluntariado em Saúde – FNVS é esse caminho para a integração, para a representação e para a defesa dos valores, dos direitos e dos interesses das inúmeras Ligas de Amigos e Associações de Voluntariado ou de Voluntários que atuam nas muitas Unidades de Saúde, públicas ou privadas, mas também nas comunidades e na educação e na promoção da saúde e de estilos de vida saudável.
Como Dom Armindo relativamente à Igreja do
Porto, também nós, aqui e agora, queremos tributar à Doutora Teresa, “homenagem e gratidão”. Ela que como a
mancha flutuante amarela e verde na Igreja da Trindade “fazia nascer sentimentos de alegria e de esperanças.” Também nós
ousamos testemunhar “a saudade do seu
sorriso que não morrerá, porque foi luz a iluminar caminhos de Esperança.”
Como um dia terá ela mesma afirmado, “dar
esmola material será caridade. / Mas dar a palavra firme / Dar tempo, disponibilidade
/ Dar-se a si mesmo… é sublime.”
Doutora Teresa! para si... a PAZ!
Nota!
Este blogue não se encontra completo. Isso só acontecerá se os leitores que conheceram e privaram com a Doutora Teresa, nos enviarem os seus testemunhos para o seguinte endereço eletrónico: geral.voluntariadoemsaude@gmail.com . Aguardamos os vossos contributos
Esta peça é da exclusiva responsabilidade de João António
Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde.
Porto, 26 de setembro de 2016.
http://www.etc.pt/VP/ler_seccao2820a.html?diranter366*8%7C2
Benjamim de Morais |
Benjamim Martins de Morais:
"Depois de atentamente ler o vosso
texto de homenagem à Maria Teresa, sinto-me lisonjeado com a obrigação de
agradecer e, convosco, continuar esta caminhada iniciada por ela. Um
Bem Haja a todo(a)s.”
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