domingo, 6 de novembro de 2016

O que é proibido
dizer a um doente zangado ?
                                                    "Acalme-se !"
Má comunicação com doentes em situações complicadas cria dificuldades nas unidades de saúde. Nova sociedade quer resolver o problema melhorando o ensino de médicos e enfermeiros.
O que é que não se deve dizer a um doente zangado? “Acalme-se”, exemplifica Irene Carvalho, a presidente da recém-criada Sociedade Portuguesa de Comunicação Clínica em Cuidados de Saúde (SP3CS), que destaca a importância da empatia e da humanização na medicina e em todas as profissões que implicam contacto com doentes.
Socorrendo-se da experiência e de estudos feitos nos Estados Unidos — onde estas questões merecem grande atenção —, Irene Carvalho sustenta que as queixas por falhas na comunicação médico-paciente são muito mais frequentes do que as reclamações devidas a incompetência técnica. “A maior parte das queixas têm que ver com problemas de comunicação”, corrobora o enfermeiro Carlos Sequeira, que acaba de lançar o livro Comunicação clínica e relação de ajuda.
Saber interagir com doentes em situações complicadas e saber como dar más notícias não implica apenas ter  intuição e bom senso.  Há “competências básicas” que devem  ser ensinadas aos profissionais de saúde, atualmente muito pressionados pela falta de tempo, defende Irene Carvalho que criou a nova sociedade científica em conjunto com outros profissionais (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, terapeutas, entre outros).
Efeitos nefastos da modernização da medicina
Com a tecnicização e a informatização do conhecimento e toda a especialização verificada nos
últimos anos, os profissionais de saúde — e os médicos sobretudo — estão muito focados na cura, nos órgãos, nos mecanismos fisiológicos, sublinha a psicóloga. Ora se esta estratégia foi ótima para o desenvolvimento da medicina, acabou por ter alguns efeitos secundários nefastos na relação com os pacientes, considera.  
Se os doentes reclamam por causa de falhas de comunicação, os profissionais de saúde também se queixam, sobretudo de ter cada vez menos tempo, de tal forma estão pressionados para usarem computadores e prestarem atenção aos indicadores. Em Espanha, recorda Irene Carvalho, “os médicos de família têm sete minutos para estar com os doentes”. Em Portugal, este limite não existe, mas já houve várias  tentativas para impor tempos máximos, lembra o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva.
Também não será necessário tanto tempo assim. Numa consulta normal, 25 minutos serão suficientes, acredita a psicóloga. Como? É possível gerir de forma mais adequada o tempo disponível, evitando questões de última hora — que contribuem para o arrastar das consultas —, ou usando técnicas para controlar o discurso dos doentes.  Um exemplo: quando o doente está sistematicamente a repetir as mesmas coisas é porque entende que o profissional não está a ouvir; neste caso, a técnica é ir resumindo aquilo que ele vai dizendo.

“Os médicos têm consciência da importância da comunicação, o consentimento informado trabalha esta questão, mas é bom que haja um fórum em que tudo isto se discuta. Por vezes o cansaço faz com que sejam menos felizes na comunicação com os doentes. Mas a verdade é que sem tempo não há uma boa comunicação”, avisa o bastonário.
Em 2014, o Tribunal de Contas (TdC) desencadeou grande polémica ao calcular que, se se assumisse como “razoável” o tempo de 15 minutos para o atendimento, seria possível fazer mais 10,7 milhões de consultas por ano, e ficaria resolvido o problema da falta de médicos de família em Portugal . “Foi um momento menos feliz do TdC, reduziu os doentes a matemática”, lamenta José Manuel Silva.

Em Portugal, não se sabe o que se passa nos consultórios. Mas, de novo nos EUA, um estudo permitiu perceber que os médicos, em média, tendem a deixar falar os doentes só 18 a 23 segundos, nas declarações iniciais. Resultado: 54% das preocupações ficam por abordar e o problema é de tal forma sensível que os médicos norte-americanos alvo de mais reclamações são obrigados a fazer cursos de comunicação, sintetiza Irene Carvalho. “É toda outra mentalidade".

Médicos nem se identificam
Frisando que, em Portugal, “a informação fornecida ao doente é minimalista e muitas vezes os profissionais nem sequer se identificam”, Carlos Sequeira insiste que investir na comunicação clínica nem sequer implica custos acrescidos. “Não são necessárias máquinas, mas apenas sensibilidade, disponibilidade e recursos humanos”, elenca. Com a “crescente desumanização” nos serviços de saúde, os doentes ainda são muitas vezes menosprezados e eles próprios, por razões culturais e de falta de literacia, não reclamam. “Muitas pessoas ficam doentes por causa das palavras ou da falta delas”, enfatiza o enfermeiro, para quem a “empatia e a assertividade” são fulcrais neste processo.
Mas em Portugal pouco se sabe sobre estas matérias. Conhecidos são os números de milhares de reclamações que em cada ano são apresentadas por doentes e seus familiares. Os motivos aparecem, todavia,  agrupados em subtipos que não permitem perceber o peso e a dimensão dos problemas de comunicação.
Por isso é que nos últimos anos as escolas que ministram cursos de saúde, sobretudo as faculdades de medicina, passaram a incorporar disciplinas de comunicação clínica, como acontece na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde Irene Carvalho é professora, e em várias outras faculdades do país. Uma das tarefas prioritárias da nova sociedade é justamente fazer um levantamento do que se ensina nas escolas com cursos de saúde e criar um currículo básico que todos possam integrar.
O que se ensina nestas disciplinas? Por exemplo, a entrevistar os doentes, porque aprender a começar e a encerrar a conversa é fulcral. São feitas simulações com alunos, com atores contratados, e mais tarde com doentes, em duas salas contíguas designadas como “laboratório”. Os professores observam para depois corrigirem o que está a ser feito de errado durante a entrevista.

https://www.publico.pt/sociedade/noticia/o-que-e-que-nao-se-dev-dizer-a-um-doente-zangado-acalmese-1750121?page=-1
E nós, voluntários do campo da saúde, que dizemos aos doentes quando os encontramos zangados? Ou doridos. Ou angustiados. Que lhes dizemos nós? Ou apenas estamos - em presença efetiva e total, claro. Face ao texto que aqui se reproduz, convido-vos a que façais o exercício da reflexão sobre o tema. Também nós, voluntários, somos importantes para os doentes. Somos parte da comunidade da Unidade de Saúde. Somos aqueles e aquelas que temos todo o tempo do mundo, simplesmente para estar. Se conseguirmos fazer isto, bem feito, creio que já estaremos a prestar uma excelente ajuda à pessoa que sofre, ao nosso irmão ou à nossa irmã, afinal cidadãos como nós que apenas se encontram em situação de fragilidade quase sempre total.
Porto, 6 de novembro de 2016, João António Pereira, presidente em exercício, da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde.

sábado, 5 de novembro de 2016

O VOLUNTARIADO

PODE SER MÃO DE OBRA GRATUITA!


Há dias, em razão do desempenho do cargo, participei como convidado numa iniciativa do âmbito da economia social e das coletividades. Aí foi feita alguma analogia entre a atividade organizativa, do exercício dos poderes; e da gestão ou de administração das pessoas coletivas de direito privado sem finalidade lucrativa, nomeadamente as na forma de associação, com as entidades do poder local, freguesias e municípios, pessoas coletivas de direito público; sendo mesmo realçada a importância da participação nos Órgãos Sociais e na vida das coletividades, que por isso mesmo, promove e possibilita uma das melhores aprendizagens ao nível da participação cívica dos cidadãos na vida das Organizações da Sociedade Civil, resultando daí, o surgimento de potenciais e bons candidatos aos Órgãos do Poder Local. Até aqui tudo bem. Mas eis senão quando hoje…

Em www.zap.aeiou.pt dou de caras com a peça jornalística intitulada “Há 38 mil desempregados a trabalhar por 80 euros por mês, nas autarquias”. E diz mais: “As câmaras municipais tiveram ao seu serviço cerca de 38 mil desempregados, colocados pelos Centros de Emprego, a trabalhar por uma bolsa mensal de pouco mais de 80 euros, ao longo de 2015. As autarquias assumem que são funcionários essenciais e os sindicatos falam em “escravatura dos tempos modernos”. E adianta também que “a situação foi denunciada pelo Bloco de Esquerda (BE) e é reportada pela TSF, que avança que, durante 2015, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) colocou 38 mil pessoas a trabalhar nas autarquias através dos chamados Contratos Emprego-Inserção (CEI).”

Outra vez o Bloco de Esquerda. Ou outra vez, se anda a falar de emprego, de desemprego e do uso de mão de obra barata ou gratuita? Então é assim: os números que são avançados e por quem os publicitou, são dados como oficiais e como coincidentes com o número de desempregados (38 mil) que os Centros de Emprego colocaram em 2015, ao abrigo dos chamados Contratos de Emprego – Inserção (CEI’), mas não apenas nas Autarquias Locais. Nestas, terão sido colocados 12 mil; mas nas IPSS’ – Instituições Particulares de Solidariedade Social, foram muito mais. Terão sido colocados 18 mil. Se se fica a saber que no referido ano, os desempregados colocados ao abrigo dos CEI terão representado “mais de um terço dos 110 mil funcionários que trabalham de forma tradicional” para as autarquias, já o mesmo não se pode dizer relativamente às IPSS' porque não existe informação a esse respeito.

Estaremos perante uma situação que não se pretende, e que tem alguma particularidade que interessa apontar. Ou seja. As Organizações representativas dos trabalhadores alegam que os CEI’ “são usados de forma abusiva”. A Provedoria de Justiça tem vindo a acusar o “Estado de abusar do trabalho de desempregados (…). Continua a receber queixas (…) e encontra-se a acompanhar o assunto”, tendo já mesmo aberto procedimentos de queixa. Por outro lado, para as autarquias, apesar de admitirem “que os números revelados (…) são altamente significativos", (não se podendo portanto, esconder o sol com a peneira) também admitem que “estas pessoas fazem falta às autarquias e, se tivessem sucesso nas funções, devia ser possível contratá-las findo o CEI”, já que, também reconhecem, que os “CEI foram criados com o objetivo de minorar a subida exponencial do desemprego e manter as pessoas ativas mesmo sem um trabalho formal.”. Mas… o STAL – Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local vem dizer “que estes desempregados tapam "necessidades permanentes" e trabalham em inúmeros tipos de funções nas autarquias.”, antes desempenhadas pelos chamados “trabalhadores tradicionais”. E que se passa no que respeita aos CEI’ nas IPSS’? Mais uma vez nada sabemos. Mas que pode ser (ou vir a ser) terreno fácil para o uso (mau uso) dos desempregados em situação de CEI, lá isso pode. Não estamos imunes a isso.

E agora pergunto: mas porquê esta abordagem acerca dos CEI’? Se bem se recordam, também da parte do BE, a sua coordenadora afirmou mais ou menos em abril deste ano, que “o trabalho voluntário é uma treta”, altura em que eu, também neste local, escrevi que a Dra. Catarina Martins não havia afirmado que o “voluntariado é uma treta”, e mostrei preocupação quanto ao impacto da afirmação (a efetivamente feita) para o voluntariado. Pois é. É que as coisas podem andar todas ligadas e volta e meia, sejam eles desempregados, sejam CEI’ ou ASU’ (Atividades Socialmente Úteis), sejam mesmo os voluntários dos muitos e de qualquer setor, podem tornar-se em presas fáceis no que toca a usar mão de obra a baixo custo ou gratuita. E quando falo gratuita estou mesmo a referir-me aos voluntários. E mesmo aos voluntários do campo da saúde? Claro que sim.

E é verdade (ou pode ser verdade). Em todas as situações que antes referi, os voluntários, podem ser mesmo a presa mais fácil quer por razões financeiras quer, talvez mais vezes, por razões sobretudo ligadas ao desejo de fazer o bem e não se dar conta que esse bem (ou essa função) é típica do “trabalhador tradicional” e não e de qualquer voluntário, embora a hipótese de confusão de papéis seja mais frequente ao nível das funções de operacionalidade (assistentes operacionais) ou auxiliares.

Mas em todas as situações. Seja nas Autarquias, seja nas IPSS’, seja em outras Organizações da Economia Social… todos nós voluntários, coordenadores, técnicos e dirigentes, devemos (temos que) estar atentos ao que se passa, por razões de respeito por todos e por cada colaborador, na sua especificidade e na sua diferença, mas, e muito mais, pelo respeito que a todos obriga que se tenha pela pessoa, quer seja em contexto organizacional quer não. Se queremos humanizar temos que ser humanos. Temos que ter posturas e práticas que dignifiquem, não apenas as Organizações, mas, e acima de tudo, as pessoas, voluntários e beneficiários.

E isso passa muito e também, pelo cumprimento da legislação sobre o voluntariado que é muito clara quando se refere ao princípio da complementaridade e diz “o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.”.  Ou seja, o voluntário não executa o que executa o “trabalhador tradicional”. Está para além daquele. Contrariamente ao que canta a Adelaide Ferreira, o voluntário, (na maioria das situações) não tem o papel principal. Complementa o trabalho daquele. Aporta algo mais (o que não é mensurável) ao trabalho daquele e com isso faz com que o resultado final seja superior ao que seria se não existisse o contributo do voluntário.
Afinal a Lei é tão clara e o seu cumprimento é tão fácil. Basta a firme vontade (boa vontade) e a implementação de boas políticas e bons programas de voluntariado? Não. Ou melhor: sim, isso é importante. Mas não basta.

É também necessário que cada vez mais seja exercida verdadeira vigilância (para não dizer fiscalização) sobre a atividade do voluntariado. Até a algum tempo não se sabia a quem competia esse papel. Mas hoje sabe-se. A fiscalização do cumprimento da legislação do voluntariado é atribuição da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho. Que cumpramos e não tenhamos receio de ser fiscalizados. Mesmo no campo da saúde.

Porto, 5 de novembro de 2016, João António Pereira, presidente (em exercício) da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde


Fonte: http://zap.aeiou.pt/ha-38-mil-desempregados-a-trabalhar-por-80-euros-por-mes-nas-autarquias-136671

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Estas conversas
são o abrigo de quem está na rua
MARGARIDA DAVID CARDOSO 
30/10/2016 - 09:00

A Associação Conversa Amiga surgiu há dez anos com o objetivo de combater a exclusão e a solidão de quem dorme nas ruas de Lisboa. E fá-lo conversando. Hoje, dá às pessoas que acompanha um local próprio e seguro, companhia e saúde.
Está há um ou dois dias atracado no terminal de passageiros de Santa Apolónia. “Uns vão, outros vêm”, perde-se a conta. R não se cansa de admirar o enorme cruzeiro. Gostava muito de entrar num destes. Talvez fazer um cruzeiro.
Será agora a sua vez? Afinal não. “Eu tenho tempo, quando a Joana puder”, afirma. R tem 33 anos e uma história dura que o trouxe para a rua. Vive em situação de sem abrigo há um mês, o suficiente para os seus caminhos se terem cruzado com os da Associação Conversa Amiga (ACA).
Esta é uma terça-feira como todas há mais de dois anos. Joana Teixeira, psicóloga comunitária, chega às 12h30 a Santa Apolónia para responder às dúvidas das pessoas em situação de sem abrigo que a associação acompanha. “Às vezes vimos só conversar.” Antes esteve em Arroios, desde as 10h30.
- Bom dia, está tudo bem? Amanhã vai lá à consulta?
Joana conhece os horários dos compromissos de quem acompanha. Sabe-lhes os nomes, os hábitos e as histórias de cor. “Começamos muitas vezes a falar sobre coisas triviais e a conversa desenrola-se. Conversamos sobre coisas que nos levam a ir fazer o cartão do cidadão, ajudar nos pedidos de rendimentos, articular com a segurança social ou pedir um quarto.” Dar a conhecer os direitos de quem acha que os perdeu ou não sabe que os tem é uma grande parte do seu trabalho.
Esta terça-feira, já combinou com três pessoas tratar da renovação do cartão do cidadão e na quinta-feira lá estará com M para tratarem da sua entrada num centro de alojamento. Mas estas conversas não se ficam pelo círculo informal. A ACA encaminha os casos – que sinaliza nas acções de rua – para o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA), onde Joana se torna formalmente a gestora de caso. Actualmente, acompanha 45 pessoas.
Quando chega a Santa Apolónia, um grupo de cerca de dez pessoas espera. Guardam a vontade de falar.
A conversa é a base de todo o trabalho. “Às vezes pensamos erradamente sobre as coisas que eles precisam.” Como podem saber o que se precisa quem vive na rua, sem ouvir quem lá está?
Faz três anos que, destas conversas, perceberam a dificuldade que estas pessoas tinham em guardar os seus pertences. Daí surgiram os cacifos solidários, destinados a quem dorme na rua – para já, perto das zonas de Arroios e Santa Apolónia. São 24 cacifos, existentes desde Outubro de 2013, numa iniciativa apoiada pela Câmara Municipal e por uma campanha de crowdfunding.
Até ao final do ano, a associação espera ter mais 36 na rua, para completar a rede de 60 cacifos na cidade. Doze no Cais do Sodré, outros tantos no Oriente e no Rossio – nestes dois últimos locais o impasse com as juntas de freguesia mantêm-se.
Como destaca Duarte Paiva, presidente da ACA, os cacifos são um “local seguro e digno” que permite ampliar a rede de apoio: “Este projecto permite-nos ter um acompanhamento regular com cada vez mais pessoas e vimos que mais de 40% dos casos saíram da rua”. Quem os utiliza assina um contracto e compromete-se, a todas as terças-feiras, vir sentar-se à conversa com as psicólogas.
Estes armários amarelos nunca são revistados e as chaves são trocadas sempre que mudam de dono. Nos atuais 24 cacifos, já passaram 47 pessoas.
Para o sr. A, de “50 e tal anos”, os cacifos foram “uma ideia mágica”. É lá que guarda “a casa” antes de ir trabalhar. Assim, durante o dia, nem se lembra que dorme na rua. “Assim sei que as minhas coisas estão seguras e limpas. Ninguém rouba, nem a Câmara tira”.
No sábado passado, quando os voluntários chegam para conversar, o sr. A sorri e farta-se de sorrir. Esta não parece uma noite triste.
Um amigo
Era Natal, daqueles frios em que a solidariedade também nos aquece. Duarte Paiva, na altura estudante de arquitectura, foi entregar comida e roupa na rua. Percebeu aí: “Estas pessoas têm comida e roupa, mas isso não lhes chega.”
Nessa altura, veio-lhe à memória um senhor que dormia na rua, junto à casa onde morava, nos Açores.Tinha oito anos quando decidiu ir entregar-lhe comida: “Ele perguntou-me se o que levava era pão. Olhou-me com tal desdém que eu deixei o saco no chão e fui a correr para casa. Se calhar, eu dar-lhe pão era uma humilhação. O que é que ele queria?”
A pergunta cresceu com Duarte e, naquele Natal, foi capaz de lhe dar uma resposta: “Percebi que havia uma coisa muito importante que eu tinha para dar: o meu tempo.” Criou um blogue e convidou outros a virem conversar, nas ruas de Lisboa, com as pessoas que encontrassem a dormir na rua. Oferecia-lhes chá como pretexto para se sentar à sua beira. Percebeu que a conversa as satisfazia mais do que o alimento.
Onze anos depois, é ainda assim que funciona “Um sem abrigo, um amigo”, um dos sete projectos da ACA. “Há muitos grupos que distribuem comida e roupa. Todos essenciais, mas a conversa também o é. Nenhuma associação substitui a outra”, afirma.
Dois sábados por mês, às 20h, as quatro equipas de voluntários segue para a rua. Para Santa Apolónia, Oriente, Arroios e outra para o Cais do Sodré. O objectivo? Combater a exclusão e a solidão na rua. Compreender as pessoas. Ouvi-las.
“No início, às vezes, berram connosco. Só às vezes”, ri-se Duarte. “Mas à medida que vamos construindo esta relação de paridade, as pessoas conversam e abrem-se connosco.” Tudo começa com o contacto simples. A horizontalidade na fala, no modo de tratar o outro. Os laços que se criam são o grande triunfo da acção nas ruas.
Foi a partir deste projecto, criado um ano antes, que em 2006 surgiu a ACA. Hoje, a associação tem cinco pessoas em trabalho a tempo inteiro: Duarte, o presidente, Joana Teixeira, a psicóloga comunitária, Joana Guerreiro, psicóloga clínica, Joana Feliciano, na comunicação e marketing, e Diana Silva, enfermeira nos Quiosques da Saúde.
Aos voluntários exige-se brio. Responsabilidade. Humanidade. Ninguém sai para a rua sem passar pela selecção e formação, 20 horas no total. Há uma “lição” que Joana olha com “mais carinho”: porque devem dizer “pessoa em situação de sem abrigo” e não “sem abrigo” - porque “a condição de sem abrigo não as define como pessoas”, explicava mais tarde Guilherme Pereira, de 24 anos. Um dos 43 voluntários do projecto.
A casa de Santa Apolónia
- Limpem os pés antes de entrar que ainda hoje aspirei – graceja o sr. J. Não deixa que os voluntários se sentem no chão. “Tenho muitos sofás”, diz, ao distribuir cobertores.
São quatro voluntários no grupo de Santa Apolónia deste sábado: Guilherme, nutricionista, Maria José Felgueiras, professora de inglês, Mónica Correia, psicóloga, e Pedro Faria, médico. Noutros grupos há também empresários, estudantes, militares. Mónica  é a coordenadora da equipa e veio de propósito para a lateral da estação para ver como estavam o sr. J e o sr. A. Da outra vez tinham-na deixado preocupada.
O sr. J, de 45 anos, já leu o livro que lhe levaram. E quer mais. “Claro que isto não era o que a gente queria. Mas desde que me dêem livros, a  vai-se aguentado.” Desde que não sejam de Saramago ou José Rodrigues dos Santos, prontifica-se a acrescentar. Já deu uma boa oportunidade a ambos, mas “quem pode gostar de Rodrigues dos Santos depois de ler Dan Brown?”, pergunta.
Ainda há-de escrever um livro. Ele é que diz e Guilherme concorda. “Não uma autobiografia, uma autocrítica: sobre as peripécias.” Talvez também sobre as viagens e sobre os trabalhos: no matadouro, nas empilhadoras, nos camiões, numa grande empresa. E sobre a heroína. Depois, sobre o vício que acabou numa das ilhas do Atlântico. Nunca mais lhe tocou.
Desde que voltou a Lisboa, pede o mesmo que pediu nos Açores: “Não pedi rendimento, pedi um quarto.” Quer deixar o "número 1 da Rua da Amargura.”
Os voluntários começam a conhecer-lhes as dinâmicas - ainda que em Santa Apolónia as caras mudem com muita frequência. As namoradas, os amigos, a literatura, o cinema, o jornal do dia. A vida como ela é, mas na rua.
- Já vão? Fiquem para o serão – diz o sr. J. À saída, pede aos voluntários que fechem a porta, dá corrente de ar. Também há-de mandar consertar a janela da sua casa na rua.
Por volta das 22h, em frente à estação, serve-se o chá de baunilha e caramelo, uns copos atrás dos outros, e desejos de boa noite. Os voluntários seguem para o viaduto, o “Palácio de Inverno” do sr. J e o sr. A quando a chuva insiste em cair.
- Estas são dores que não interessam nem aos animais - conta a Pedro um outro sr. J, de 71 anos.
Cedo perceberam que havia uma falha “urgente” a colmatar: o acesso a cuidados de saúde, ainda que primários. “A maioria das pessoas que acompanhamos não têm acesso a um médico de família ou não têm como se deslocar a até ele”, nota Sofia Remtula, médica e coordenadora do projecto “Saúde na Rua”. A equipa que coordena tem quatro médicos que a cada sábado acompanham os voluntários do “Um sem abrigo, um amigo”.
Pedro é o médico de serviço em Santa Apolónia. Esta noite, mediu por três vezes a tensão e entregou alguns compridos para as dores. Algumas só a conversa cura.
Já passava das 23h, a hora em que está previsto acabarem as conversas, mas o grupo ainda tem que passar pelo outro lado do viaduto, para ver se alguém está acordado. Sim, um outro sr. J está desperto. Mónica pergunta sempre se se pode sentar. “Não se pode entrar sem pedir no espaço de outra pessoa, mesmo que seja na rua”, já tinha contado. Senta-se à conversa.

domingo, 23 de outubro de 2016


8.º ENCONTRO NACIONAL
DO VOLUNTARIADO EM SAÚDE

CONCLUSÕES

Subordinado ao tema “Da Proximidade à Globalidade”, realizou-se a 22 de outubro de 2016, em Tomar, o 8.º Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde, com a participação de cerca de 250 voluntários, convidados, personalidades do Poder Local, da Administração Pública, da Saúde, da Ação Social e de Organizações da Sociedade Civil; e amigos do Voluntariado que em Portugal se desenvolve em Unidades e em Equipamentos onde se prestam serviços e cuidados de saúde, sobretudo no Serviço Nacional de Saúde.
O evento foi promovido pela Federação Nacional de Voluntariado em Saúde, e organizado em parceria com a Liga dos Amigos do Hospital de Tomar, com a Câmara Municipal da mesma cidade e com o apoio para a comunicação, da Rádio Canção Nova; e do Jornal e Rádio Cidade de Tomar, relevando-se ainda o contributo de voluntários, presidente e diretores da referida Liga; e de colaboradores municipais e outros. A todos se agradece.
Para além da promoção de encontro anual de quantos dedicadamente servem todos os dias os utentes das Unidades e Equipamentos de Saúde, a iniciativa teve também o mérito de congregar preletores de excelência, que proporcionaram abordagens e reflexões de alta qualidade acerca dos subtemas, “Quem é o meu próximo? Proximidade, justiça e responsabilidade”, “O voluntariado de proximidade, em contexto hospitalar e na comunidade” e “Reconhecimento das aprendizagens decorrentes do voluntariado”, contribuindo assim com os seus saberes e prestígio, para voluntariado e voluntários mais esclarecidos, mais formados, mais capacitados e mais aptos para desempenharem melhor o seu papel e para satisfação das pessoas e das Organizações.
Os participantes no 8.º Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde, declaram:
Que comungam dos objetivos, dos conceitos e dos princípios que em Portugal dão hoje corpo e forma; e enquadram o voluntariado organizado. Acreditam que a prática do voluntariado é um modo possível para a vivência ativa da cidadania; e que no campo da saúde, aquela tem papel insubstituível para a humanização, em regime de complementaridade. Afirmam que o voluntariado é um contributo inestimável na promoção do desenvolvimento pessoal, social e comunitário, com posturas de cooperação interpessoal e entre Organizações, e fomento à participação direta, ao pensamento crítico e ao interesse ativo dos cidadãos na sensibilização para os benefícios decorrentes do voluntariado, para todos os cidadãos, com a promoção de sentimento comum de responsabilidade, de solidariedade.
E estabelecem as seguintes conclusões:
1.       O voluntariado no campo da saúde, é verdadeiramente de proximidade; e caracteriza-se por uma interpessoalidade tão próxima e comungante que promove e sugere relações plenas de simpatia e de empatia. A autêntica proximidade, aquela que é parte da cura e que liberta, também está no exercício do voluntariado no campo da saúde, esse que responsabiliza a todos e que é dever de justiça e de cidadania, mas também de compaixão e de misericórdia, estas que relevam a importância da disponibilidade e da dádiva amorosa e sem contrapartidas. É na proximidade que o voluntário sabe e vive em si mesmo quem é o seu próximo. São estes encontros plenos de gestos simples que fazem sentido e têm sentido. É esse sentido que sendo gesto de aproximação no imediato e no presente, não se esgota em si mesmo, mas antes tece um sentido que o supera.
As mais valias e os ganhos para todos os stakeholders, decorrentes da prática da proximidade e do encontro no âmbito do voluntariado em saúde, são por demais evidentes e ineludíveis; e apelam à integração dos voluntários nas equipas de trabalho, com a necessária adaptação às diferentes realidades institucionais, comunitárias e de prestação de cuidados.
As Organizações Promotoras de Voluntariado no campo da saúde e seus voluntários, carecem e requerem que para eles se dirija um outro olhar, um olhar diferente, um melhor olhar. É necessário que o voluntariado no campo da saúde, seja visto como parceiro verdadeiramente estratégico a nível superior. Ele é mesmo contributo indispensável, para a realização dos objetivos das Entidades e da obtenção de níveis superiores da qualidade dos serviços e cuidados que são prestados; e isso deve ser reconhecido.
É necessário conjugar competências académicas e pessoais, no sentido do aumento do desempenho e da prestação de melhores e mais adequados serviços de voluntariado; e devem haver “novos modelos de serviços para cuidados integrados e centrados nas pessoas: serviços domiciliários e de proximidade mais disponíveis, com a participação das instituições de solidariedade e voluntariado”.
2.       A aprendizagem ao longo da vida é uma realidade e acontece em diversos contextos sendo o voluntariado uma experiência em que acontecem aprendizagens com um impacto relevante a nível pessoal, social e profissional.  Aceita-se que se reconheçam e validem as aprendizagens em voluntariado. Mas não se aceita que isso alguma vez possa subverter os valores e os princípios que norteiam o voluntariado em geral e os do campo da saúde em particular.
O reconhecimento e a validação das aprendizagens decorrentes do voluntariado, se tem dimensão global, também tem dimensão própria, particular e específica no campo do voluntariado na saúde. Que a sua implementação e desenvolvimento, aconteça sim, mas com o bom-senso e a certeza de que acrescenta valor e eleva o nível da prática do voluntariado, no sentido do melhor serviço às pessoas, nomeadamente aos mais excluídos dos excluídos.
Tomar, 22 de outubro de 2016
Os participantes no 8.º Encontro Nacional do Voluntariado em Saúde
Aprovado por unanimidade e aclamação
Nota: a versão longa pode ser acedida em:
 http://www.associapro.com/docdownload.aspx?file=doc3204.pdf                                      

domingo, 9 de outubro de 2016

Eutanásia:

“Há circunstâncias atenuantes que justificam a absolvição”

Pe. José Nuno, sacerdote católico
Padre José Nuno, o capelão português que esteve mais tempo em funções num hospital, admite que em alguns casos os médicos que ajudem a morrer doentes terminais não devem ser condenados. E defende ensino sobre a morte nas escolas.
Depois de 18 anos à frente da capelania do Hospital de S. João, no Porto, o padre José Nuno Ferreira da Silva assumiu sexta-feira o cargo de capelão no Santuário de Fátima, onde vai criar um centro de escuta e acolhimento e formar terapeutas capazes de responder à constatação de que a confissão deixou de ser resposta para os que sofrem. Diz que a “total erradicação da morte do espaço público” se tornou patogénica e que o facto de as pessoas recusarem encarar a morte deixará buracos biográficos irremediáveis na vida de cada um. É preciso ressocializar a morte, levá-la às escolas, juntamente com a educação sexual. E apostar nos cuidados paliativos. Quanto à morte medicamente assistida, admite-a em casos excecionais, mas considera que não deve ser despenalizada.
As estatísticas mais recentes mostram que cerca de 60% das mortes ocorrem em contexto hospitalar. O que mudou na forma como se morre nos hospitais ao longo destes 18 anos?
Os doentes que estão a morrer começaram a ser considerados em vez de arrumados. Na prática, isso traduziu-se na criação de espaços adequados onde as pessoas possam estar com as suas famílias. Quando cheguei lá, a generalidade dos óbitos era em salas de pensos, onde os doentes eram isolados e agonizavam. E proibia-se a entrada e a permanência dos familiares. O gatilho do meu trabalho sobre o processo de morrer no hospital, que me deu raiva suficiente para me debruçar sobre o assunto, foi ter visto uma mulher a ser arrastada pelos corredores pela segurança do hospital a protestar porque não a deixavam ficar com o marido que ia morrer naquela noite. A esposa queria ficar, toleraram-na mais uma hora para além da hora de visita, mas depois arrastaram-na dali para fora.
Hoje as pessoas já conseguem acompanhar o doente que está a morrer?
Conseguem. Às vezes, não são capazes. É uma questão de capacidade, porque a cultura vigente arruma a morte, não quer olhar para ela. Aliás, uma das coisas curiosas, e um sintoma de hipocrisia social é que, no fim da legislatura do governo Sócrates, foram publicadas várias leis que, à semelhança do que se previa relativamente a crianças e a pessoas com deficiência mental, estabeleciam o direito de os doentes em estado terminal serem acompanhados a tempo inteiro pelos seus familiares. Era uma lei fraturante, mas de que ninguém falou. E enquanto para as crianças e para os deficientes o direito foi depois tutelado, em relação a quem fica a acompanhar quem está a morrer nada está previsto. E o certo é que ninguém reclama por isso. Acho que as pessoas, por incapacidade – e isto não é um julgamento, é um lamento – preferem que não haja as condições todas para estar, porque têm medo de estar. Isso é batota.
Alguns autores consideram que, a partir dos anos 50, a morte substituiu o sexo como tema tabu. Por que é que a morte caminhou para esta espécie de não visibilidade? 
Porque a redução do conceito de felicidade ao bem-estar exige arrumar, não olhar, esquecer, ou fazer de conta que se esquece, tudo aquilo que possa perturbar o bem-estar. E é claro que o rosto de alguém que está a morrer rasga a máscara, diz que a felicidade não é redutível ao bem-estar. Só que nós vamos todos no carrossel do bem-estar e por isso temos uma incapacidade estrutural de olhar para esta realidade.
Esta transferência da morte para os hospitais é consequência dessa incapacidade de confronto com a ideia de finitude ou é um sinal de progresso, na medida em que traduz um maior acesso à Saúde?
Efetivamente, a curva ascendente da transferência da morte para o hospital coincide com a criação do Serviço Nacional de Saúde, na década de 70. Portanto, o morrer no hospital significa, em primeiro lugar, que a sociedade assume uma especial solicitude para com os que estão a morrer. Esta é a dimensão positiva. Mas o fenómeno é ambivalente, porque, ao mesmo tempo, traduz esta outra incapacidade de olhar para a morte e de acompanhar aqueles que estão a morrer. Mas isso não se aplica só às famílias. Na Igreja, fizeram-se as capelas mortuárias. Numa comunidade paroquial, uma pessoa faz toda a sua vida na igreja paroquial. É lá que se é batizada, faz catequese, a comunhão solene e o crisma. É lá que casa e batiza os filhos. Já o funeral é na capela mortuária. A transferência do morrer não é apenas uma questão de morrer em casa ou no hospital. É a remoção do morrer para um espaço à parte.
Na realidade hospitalar, o que falta ainda fazer? 
Falta criar uma unidade de cuidados paliativos. O hospital tem um serviço de cuidados paliativos, que é dos maiores e melhores do país, mas ainda não há uma unidade de internamento em cuidados paliativos que é absolutamente necessária, também por outra razão: o São João é um hospital universitário e se a morte está nas mãos dos profissionais de saúde temos que formar os futuros médicos e os enfermeiros para a naturalidade da morte. É no processo educativo que se começa a desatar este nó. E nem vale a pena falar dos assistentes operacionais que são completamente excluídos do processo formativo e eles têm uma proximidade aos doentes que não pode ser ignorada. Eu intervim em vários processos em que os doentes souberam que estavam a morrer pelos auxiliares, às vezes em conversas acidentais entre eles.
Os cuidados paliativos são a resposta para a necessidade de ajudar os que estão a morrer? 
Os cuidados paliativos são, não só o modo adequado de ajudar as pessoas no processo do seu morrer, como lugares de emergência de uma outra cultura que olha e aceita a naturalidade da morte. Nós transformamos a morte numa realidade artificial, medicamentalizamo-la desritualizamo-la, mas a morte é natural. E qual é o olhar original dos cuidados paliativos? É aceitar a naturalidade da morte. 
E a minha esperança é que os cuidados paliativos se desenvolvam o suficiente para serem uma fonte de regeneração da própria medicina, que não é uma luta contra a morte, mas uma luta a favor da vida e de uma vida vivida ao máximo, também quando se está a morrer. Viver ao máximo quando se está a morrer não é encharcar o doente de medidas invasivas e de medicação que impede que a morte aconteça num dia para acontecer dois dias depois.
O que acha da proposta sobre a morte assistida? 
Acho uma péssima proposta. Compreendo as razões, tendo em conta este fundo cultural de que estivemos a falar, e acrescentando a este fundo cultural uma outra dimensão que é a nota profundamente individualista da cultura contemporânea. Agora a minha atitude em relação a isto é que a morte de uma pessoa é terreno sagrado – e não falo no sentido religioso - e em terreno sagrado a gente descalça-se. Ora, neste debate em torno da morte assistida está demasiada gente a entrar de chancas, quer de um lado quer do outro.
Posto de parte esse ruído, as pessoas devem ou não ter o direito, legalmente constituído, de definirem a sua própria morte e serem ajudadas nisso?
Na sociedade em que estamos fala-se muito em direitos e esquecem-se os deveres. A questão que se coloca aqui é se o Estado, enquanto representação da sociedade, tem o dever de responder positivamente a quem pede para ser ajudado a morrer. Com tudo o que isto encerra, porque a morte assistida medicamente (seja por eutanásia seja por ajuda ao suicídio) é uma mudança de paradigma.
O Estado tem esse dever?
 Não tem esse dever nem pode reivindicá-lo. O dever do Estado é respeitar a vida dos seus cidadãos e proporcionar todas as condições para que os seus cidadãos vivam o mais humanamente possível.
Numa situação em que um doente não tenha perspetivas que não sejam de sofrimento e morte, qual deve ser a resposta do Estado?
 Proporcionar-lhe todo o conforto que exista. E por isso volto ao discurso da hipocrisia social: no Hospital de São João um doente pede uma consulta de cuidados paliativos, mas o serviço, que é dos maiores e dos melhores do país, é incapaz de responder a esse pedido porque tem listas de espera e, muitas vezes, quando responde já o doente morreu. E é desta realidade que temos de nos ocupar antes. Há pessoas que pedem para ser ajudadas a morrer, ou que lhes deem a morte, e fazem-no convictamente, com uma história de vida que justifica isso. Agora isto tem de ser polido com outra realidade que é a saber se o Estado tem ou não o dever de fazer isto. Por outro lado, estas situações não podem deixar de ser exceção.
E nessas situações de exceção qual deve ser a resposta?
 A resposta tem de ser “Nós não matamos, a lei é esta. O Estado não mata nem responde positivamente a quem pede para morrer”. Mas há situações de exceção e os organismos do aparelho do Estado têm a obrigação de ter para com essas pessoas uma atenção e uma proximidade excecionais. E as pessoas envolvidas no processo, ou outras que são chamadas a envolver-se, podem, naquelas circunstâncias concretas, chegar à conclusão que essa ajuda deve ser dada. Mas isso não pode deixar de ser um crime. Um crime que em sede de julgamento se vai perceber que tinha todas as circunstâncias atenuantes possíveis, o que resulta numa absolvição.
Mas isso implicaria que os profissionais de saúde envolvidos tivessem de se submeter a todo um outro processo em sede judicial.
Exatamente. De modo a impedir que isto se tornasse usual. Porque a sociedade está a evoluir desumanamente, isto é, estão a ser de tal maneira postas de lado franjas cada vez maiores da população que cada vez haverá mais pessoas a pedir que as matem ou que as ajudem a morrer. A minha questão é saber qual é o dever do Estado em relação a estas pessoas: ajudá-las a morrer ou ajudá-las a preservar razões para continuar a viver?
Mas admitindo, como admitiu, que há situações excecionais em que a pessoa deve ser atendida no pedido de que a ajudem a morrer, o mais certo é que o médico se recuse a fazer algo que não está previsto na lei.
Por isso é que falava há bocadinho das pessoas envolvidas ou chamadas a envolver-se, porque pode acontecer que os médicos e enfermeiros diretamente implicados não o queiram fazer por uma questão de consciência.
Causa-me alguma estranheza o seu raciocínio. Admite que sim, que ela pode ser pertinente nalgumas circunstâncias excecionais, mas não quer isso previsto na lei.
Há biografias nas quais se consegue enquadrar o pedido de morrer, são situações de exceção. E as situações de exceção têm que ser tratadas sem as esvaziarmos do seu carácter de excecionalidade.
Mas se mantivermos a exceção na ilegalidade cria-se uma série de problemas a quem a admite.
Mantém-se na exceção o seu carácter de excecionalidade. E a sociedade debruça-se judicialmente sobre cada concretização da exceção e essa exceção só se justifica quando estão reunidas todas as circunstâncias que funcionam como atenuante para, em sede de julgamento, haver uma absolvição.
Esse escrutínio judicial deve ser feito a posteriori?
 Deve incidir só sobre situações acontecidas. Agora prever anteriormente que o Estado tem o dever de responder ao pedido de matar, não.
Isso dissuadiria muitos profissionais de saúde.
Também não quero acreditar que um pedido a um profissional de saúde para que ajude alguém a morrer, seja assistindo a um suicídio seja eutanasiando, se possa transformar numa coisa massiva. Isto é, não é necessário que muitos profissionais de saúde se deixem dissuadir por isto. Acho que as coisas se devem manter na dimensão que têm. E o que estamos a assistir na sociedade portuguesa é ao empolamento de algumas destas questões.
Estou a tentar encontrar uma gaveta para arrumar isto: despenalizava-se, descriminalizava-se, continuava a ser crime mas ficava sem pena?
Não é despenalizar, é dizer que tem pena mas que há circunstâncias atenuantes que retiram a pena. Mas a determinação das circunstâncias atenuantes é feita, como em relação a todas as coisas que são crime, em sede de julgamento.
Aquilo que me defende é nesse sentido, admite que se faça na tal excecionalidade que desenhou mas continua a ser crime, suscetível de uma investigação.
E de uma penalização. Mas é como digo, uma situação em que se reúnam todas as condições que justifiquem que a situação aconteça, em sede de julgamento não há pena, há circunstâncias atenuantes que justificam a absolvição. Não pode ser confiado ao Estado o direito ou o dever de administrar a morte a pedido e não pode ser pedido ao Estado o dever de ajuizar sobre como isso é feito. Em termos de prática e da minha perceção da realidade, o que lhe posso dizer é que isto não é fácil. Mas nada que tenha a ver com a morte é fácil. Aliás, nada do que tem a ver com a substancia da vida é fácil. Tudo é árduo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

MARIA TERESA SALGADO…
… UMA MULHER DE (DA) ESPERANÇA!

Dra. Maria Teresa Salgado de Morais
Se para muita gente, há tempos e datas importantes, para si mesmos ou para os seus percursos ou projetos de vida… pode não ser menos verdade que tal possa também acontecer, relativamente a movimentos sociais e organizações, sim, porque elas também não são algo amorfo ou sem alma, porque feitas de pessoas, com pessoas e para pessoas. Vem tudo isto a propósito do seguinte:

Vinte e seis de setembro, é uma data importante na vida de uma pessoa, na vida de uma família, na vida de uma comunidade de irmãos, na vida do grande movimento que é o Voluntariado que se realiza no campo da saúde; e para a Federação Nacional de Voluntariado em Saúde. Falo da Professora Doutora Maria Teresa Cortez Salgado de Morais que inesperadamente deixou o mundo dos vivos a 26 de setembro de 2005, “apesar dos seus setenta e oito anos cheios de vida, de força, de juventude, de ternura, de alegria e de esperança.”, como alguém afirmou em peça jornalística publicada na altura.


Segundo afirmou Dom Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto, na cerimónia das exéquias fúnebres, “a Professora Doutora Maria Teresa Salgado Morais é uma das pessoas que nos ajuda a reavivar a fé, a compreender o que é cultivar a esperança e deixa para o mundo um apelo a essa mesma esperança.”, cuja postura, repleta de amor e de tal “simplicidade que não deixava ninguém indiferente. O seu sorriso de bondade e a forma como acolhia mostrava-nos o conteúdo do seu bondoso coração.”

Para além de ter sido Professora de Físico-Química no Instituto Superior de Engenharia do Porto e membro da Comissão Nacional para a Humanização e Qualidade dos Serviços de Saúde e da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde, a Doutora Maria Teresa, lançou as bases e a estrutura do que é hoje o Secretariado Diocesano da Pastoral da Saúde do Porto que surgiu em 1983, onde teve responsabilidades de direção; implementou e presidiu à Associação Voluntariado do Hospital de São João – Porto  “onde se deu inteiramente aos outros, sendo este hospital a sua segunda casa.”

A Doutora Teresa foi altamente considerada pelo Conselho de Administração do Hospital de São João que em tempo, dirigindo-se o aos voluntários, lhes disse da sua (do CA) “admiração por terem resistido ao desgaste da vossa generosidade. Às vezes dão-se e não são bem compreendidos». O CA terá salientado ainda o papel “da espetacular mulher que foi a Dr.ª Teresa Salgado que ajudou a Associação a resistir à erosão sem nada receber em troca”.

Ainda Dom Armindo, viria a salientar o papel de voluntária da Doutora Teresa, afirmando que “No Hospital de S. João foi uma pioneira, uma apostola do voluntariado. Voluntariado que vinha da paixão da solidariedade, da paixão pelas necessidades dos outros.”, porque segundo ele, “estar ao serviço num hospital é sobretudo ser um apelo, uma nota de esperança para os que sofrem e estão em risco de perder a esperança. O entusiasmo na entrega total ao voluntariado com a determinação própria de quem tem ideias e as justifica pelas iniciativas. Apostolado que faz discípulos, o voluntariado atingiu uma grande importância a nível nacional e ultrapassou fronteiras.”

A Federação Nacional de Voluntariado em Saúde - FNVS também é fruto do entusiasmo, da entrega e do dinamismo da Doutora Teresa, que sempre em harmonia com o seu marido, Benjamim de Morais, dinamizou ou ajudou a criar inúmeras Organizações de voluntariado em muitas Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde, participou ao mais alto nível do Estado e aí defendeu o voluntariado no campo da saúde e de algum modo representou os voluntários, essa multidão que ainda ninguém conseguiu contar.


A FNVS “nasceu” em maio de 2007, mas esse facto foi o resultado do sonho sonhado pela Doutora Teresa e por quem a circundava na atividade, nomeadamente por quem, olhando, não apenas para o passado, mas sobretudo para o futuro, teve a coragem de, contra algumas marés vivas ou revoltosas, rasgar os mares e seguir em frente em direção à organização global do voluntariado em saúde de Portugal. Já somos muitos, mas queremos ser mais. Somos 53 Organizações de voluntariado da saúde, o (talvez) equivalente a um universo de cerca de 25 mil voluntários.

Embora possam existir diversos caminhos para que se atingir o mesmo objetivo, a verdade é que como a Doutora Teresa, continuamos a acreditar que este é o caminho. A Federação Nacional de Voluntariado em Saúde – FNVS é esse caminho para a integração, para a representação e para a defesa dos valores, dos direitos e dos interesses das inúmeras Ligas de Amigos e Associações de Voluntariado ou de Voluntários que atuam nas muitas Unidades de Saúde, públicas ou privadas, mas também nas comunidades e na educação e na promoção da saúde e de estilos de vida saudável.

Como Dom Armindo relativamente à Igreja do Porto, também nós, aqui e agora, queremos tributar à Doutora Teresa, “homenagem e gratidão”. Ela que como a mancha flutuante amarela e verde na Igreja da Trindade “fazia nascer sentimentos de alegria e de esperanças.” Também nós ousamos testemunhar “a saudade do seu sorriso que não morrerá, porque foi luz a iluminar caminhos de Esperança.” Como um dia terá ela mesma afirmado, “dar esmola material será caridade. / Mas dar a palavra firme / Dar tempo, disponibilidade / Dar-se a si mesmo… é sublime.”
Doutora Teresa! para si... a PAZ!
Nota!
Este blogue não se encontra completo. Isso só acontecerá se os leitores que conheceram e privaram com a Doutora Teresa, nos enviarem os seus testemunhos para o seguinte endereço eletrónico: geral.voluntariadoemsaude@gmail.com . Aguardamos os vossos contributos
Esta peça é da exclusiva responsabilidade de João António Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde. Porto, 26 de setembro de 2016.

http://www.etc.pt/VP/ler_seccao2820a.html?diranter366*8%7C2


Benjamim de Morais
Benjamim Martins de Morais:

"Depois de atentamente ler o vosso texto de homenagem à Maria Teresa, sinto-me lisonjeado com a obrigação de agradecer e, convosco, continuar esta caminhada iniciada por ela. Um Bem Haja a todo(a)s.”