Eutanásia:
“Há circunstâncias atenuantes que justificam a
absolvição”
Pe. José Nuno, sacerdote católico |
Padre José Nuno, o capelão português que esteve mais tempo em funções num
hospital, admite que em alguns casos os médicos que ajudem a morrer doentes
terminais não devem ser condenados. E defende ensino sobre a morte nas escolas.
Depois de 18 anos à frente da capelania do
Hospital de S. João, no
Porto, o padre José Nuno Ferreira da Silva assumiu sexta-feira o cargo de
capelão no Santuário de Fátima, onde vai criar um centro de escuta e
acolhimento e formar terapeutas capazes de responder à constatação de que a
confissão deixou de ser resposta para os que sofrem. Diz que a “total
erradicação da morte do espaço público” se tornou patogénica e que o facto de
as pessoas recusarem encarar a morte deixará buracos biográficos irremediáveis
na vida de cada um. É preciso ressocializar a morte, levá-la às escolas,
juntamente com a educação sexual. E apostar nos cuidados paliativos. Quanto à
morte medicamente assistida, admite-a em casos excecionais, mas considera que
não deve ser despenalizada.
As estatísticas mais recentes mostram que
cerca de 60% das mortes ocorrem em contexto hospitalar. O que mudou na forma
como se morre nos hospitais ao longo destes 18 anos?
Os doentes que estão a morrer começaram a
ser considerados em vez de arrumados. Na prática, isso traduziu-se na criação
de espaços adequados onde as pessoas possam estar com as suas famílias. Quando
cheguei lá, a generalidade dos óbitos era em salas de pensos, onde os doentes
eram isolados e agonizavam. E proibia-se a entrada e a permanência dos
familiares. O gatilho do meu trabalho sobre o processo de morrer no hospital,
que me deu raiva suficiente para me debruçar sobre o assunto, foi ter visto uma
mulher a ser arrastada pelos corredores pela segurança do hospital a protestar
porque não a deixavam ficar com o marido que ia morrer naquela noite. A esposa
queria ficar, toleraram-na mais uma hora para além da hora de visita, mas
depois arrastaram-na dali para fora.
Hoje as pessoas já conseguem acompanhar o
doente que está a morrer?
Conseguem. Às vezes, não são capazes. É uma
questão de capacidade, porque a cultura vigente arruma a morte, não quer olhar
para ela. Aliás, uma das coisas curiosas, e um sintoma de hipocrisia social é
que, no fim da legislatura do governo Sócrates, foram publicadas várias leis
que, à semelhança do que se previa relativamente a crianças e a pessoas com
deficiência mental, estabeleciam o direito de os doentes em estado terminal
serem acompanhados a tempo inteiro pelos seus familiares. Era uma lei fraturante,
mas de que ninguém falou. E enquanto para as crianças e para os deficientes o
direito foi depois tutelado, em relação a quem fica a acompanhar quem está
a morrer nada está previsto. E o certo é que ninguém reclama por isso. Acho que
as pessoas, por incapacidade – e isto não é um julgamento, é um lamento –
preferem que não haja as condições todas para estar, porque têm medo de estar.
Isso é batota.
Alguns autores consideram que, a partir dos
anos 50, a morte substituiu o sexo como tema tabu. Por que é que a morte
caminhou para esta espécie de não visibilidade?
Porque a redução do conceito de felicidade
ao bem-estar exige arrumar, não olhar, esquecer, ou fazer de conta que se
esquece, tudo aquilo que possa perturbar o bem-estar. E é claro que o rosto de
alguém que está a morrer rasga a máscara, diz que a felicidade não é redutível
ao bem-estar. Só que nós vamos todos no carrossel do bem-estar e por isso temos
uma incapacidade estrutural de olhar para esta realidade.
Esta transferência da morte para os
hospitais é consequência dessa incapacidade de confronto com a ideia de
finitude ou é um sinal de progresso, na medida em que traduz um maior acesso à
Saúde?
Efetivamente, a curva ascendente da
transferência da morte para o hospital coincide com a criação do Serviço
Nacional de Saúde, na década de 70. Portanto, o morrer no hospital significa,
em primeiro lugar, que a sociedade assume uma especial solicitude para com os
que estão a morrer. Esta é a dimensão positiva. Mas o fenómeno é ambivalente,
porque, ao mesmo tempo, traduz esta outra incapacidade de olhar para a morte e
de acompanhar aqueles que estão a morrer. Mas isso não se aplica só às
famílias. Na Igreja, fizeram-se as capelas mortuárias. Numa comunidade
paroquial, uma pessoa faz toda a sua vida na igreja paroquial. É lá que se é batizada,
faz catequese, a comunhão solene e o crisma. É lá que casa e batiza os filhos.
Já o funeral é na capela mortuária. A transferência do morrer não é apenas uma
questão de morrer em casa ou no hospital. É a remoção do morrer para um espaço
à parte.
Na realidade hospitalar, o que falta ainda
fazer?
Falta criar uma unidade de cuidados
paliativos. O hospital tem um serviço de cuidados paliativos, que é dos maiores
e melhores do país, mas ainda não há uma unidade de internamento em cuidados
paliativos que é absolutamente necessária, também por outra razão: o São João é
um hospital universitário e se a morte está nas mãos dos profissionais de saúde
temos que formar os futuros médicos e os enfermeiros para a naturalidade da
morte. É no processo educativo que se começa a desatar este nó. E nem vale a
pena falar dos assistentes operacionais que são completamente excluídos do
processo formativo e eles têm uma proximidade aos doentes que não pode ser
ignorada. Eu intervim em vários processos em que os doentes souberam que
estavam a morrer pelos auxiliares, às vezes em conversas acidentais entre eles.
Os cuidados paliativos são a resposta para
a necessidade de ajudar os que estão a morrer?
Os cuidados paliativos são, não só o modo adequado de ajudar as pessoas no processo do seu morrer, como lugares de emergência de uma outra cultura que olha e aceita a naturalidade da morte. Nós transformamos a morte numa realidade artificial, medicamentalizamo-la desritualizamo-la, mas a morte é natural. E qual é o olhar original dos cuidados paliativos? É aceitar a naturalidade da morte. E a minha esperança é que os cuidados paliativos se desenvolvam o suficiente para serem uma fonte de regeneração da própria medicina, que não é uma luta contra a morte, mas uma luta a favor da vida e de uma vida vivida ao máximo, também quando se está a morrer. Viver ao máximo quando se está a morrer não é encharcar o doente de medidas invasivas e de medicação que impede que a morte aconteça num dia para acontecer dois dias depois.
Os cuidados paliativos são, não só o modo adequado de ajudar as pessoas no processo do seu morrer, como lugares de emergência de uma outra cultura que olha e aceita a naturalidade da morte. Nós transformamos a morte numa realidade artificial, medicamentalizamo-la desritualizamo-la, mas a morte é natural. E qual é o olhar original dos cuidados paliativos? É aceitar a naturalidade da morte. E a minha esperança é que os cuidados paliativos se desenvolvam o suficiente para serem uma fonte de regeneração da própria medicina, que não é uma luta contra a morte, mas uma luta a favor da vida e de uma vida vivida ao máximo, também quando se está a morrer. Viver ao máximo quando se está a morrer não é encharcar o doente de medidas invasivas e de medicação que impede que a morte aconteça num dia para acontecer dois dias depois.
O que acha da proposta sobre a morte
assistida?
Acho uma péssima proposta. Compreendo as
razões, tendo em conta este fundo cultural de que estivemos a falar, e
acrescentando a este fundo cultural uma outra dimensão que é a nota
profundamente individualista da cultura contemporânea. Agora a minha atitude em
relação a isto é que a morte de uma pessoa é terreno sagrado – e não falo no
sentido religioso - e em terreno sagrado a gente descalça-se. Ora, neste debate
em torno da morte assistida está demasiada gente a entrar de chancas, quer de um
lado quer do outro.
Posto de parte esse ruído, as pessoas devem
ou não ter o direito, legalmente constituído, de definirem a sua própria morte
e serem ajudadas nisso?
Na sociedade em que estamos fala-se muito
em direitos e esquecem-se os deveres. A questão que se coloca aqui é se o
Estado, enquanto representação da sociedade, tem o dever de responder
positivamente a quem pede para ser ajudado a morrer. Com tudo o que isto
encerra, porque a morte assistida medicamente (seja por eutanásia seja por ajuda ao suicídio) é uma
mudança de paradigma.
O Estado tem esse dever?
Não tem esse dever nem pode reivindicá-lo. O dever do Estado é
respeitar a vida dos seus cidadãos e proporcionar todas as condições para que
os seus cidadãos vivam o mais humanamente possível.
Numa situação em que um doente não tenha perspetivas
que não sejam de sofrimento e morte, qual deve ser a resposta do Estado?
Proporcionar-lhe todo o conforto que exista. E por isso volto
ao discurso da hipocrisia social: no Hospital de São João um doente pede uma
consulta de cuidados paliativos, mas o serviço, que é dos maiores e dos
melhores do país, é incapaz de responder a esse pedido porque tem listas de
espera e, muitas vezes, quando responde já o doente morreu. E é desta realidade
que temos de nos ocupar antes. Há pessoas que pedem para ser ajudadas a morrer,
ou que lhes deem a morte, e fazem-no convictamente, com uma história de vida
que justifica isso. Agora isto tem de ser polido com outra realidade que é a
saber se o Estado tem ou não o dever de fazer isto. Por outro lado, estas
situações não podem deixar de ser exceção.
E nessas situações de exceção qual deve ser
a resposta?
A resposta tem de ser “Nós não matamos, a lei é esta. O Estado
não mata nem responde positivamente a quem pede para morrer”. Mas há situações
de exceção e os organismos do aparelho do Estado têm a obrigação de ter para
com essas pessoas uma atenção e uma proximidade excecionais. E as pessoas
envolvidas no processo, ou outras que são chamadas a envolver-se, podem,
naquelas circunstâncias concretas, chegar à conclusão que essa ajuda deve ser
dada. Mas isso não pode deixar de ser um crime. Um crime que em sede de
julgamento se vai perceber que tinha todas as circunstâncias atenuantes
possíveis, o que resulta numa absolvição.
Mas isso implicaria que os profissionais de
saúde envolvidos tivessem de se submeter a todo um outro processo em sede
judicial.
Exatamente. De modo a impedir que isto se
tornasse usual. Porque a sociedade está a evoluir desumanamente, isto é, estão
a ser de tal maneira postas de lado franjas cada vez maiores da população que
cada vez haverá mais pessoas a pedir que as matem ou que as ajudem a morrer. A
minha questão é saber qual é o dever do Estado em relação a estas pessoas:
ajudá-las a morrer ou ajudá-las a preservar razões para continuar a viver?
Mas admitindo, como admitiu, que há
situações excecionais em que a pessoa deve ser atendida no pedido de que a
ajudem a morrer, o mais certo é que o médico se recuse a fazer algo que não
está previsto na lei.
Por isso é que falava há bocadinho das
pessoas envolvidas ou chamadas a envolver-se, porque pode acontecer que os
médicos e enfermeiros diretamente implicados não o queiram fazer por uma
questão de consciência.
Causa-me alguma estranheza o seu
raciocínio. Admite que sim, que ela pode ser pertinente nalgumas circunstâncias
excecionais, mas não quer isso previsto na lei.
Há biografias nas quais se consegue
enquadrar o pedido de morrer, são situações de exceção. E as situações de exceção
têm que ser tratadas sem as esvaziarmos do seu carácter de excecionalidade.
Mas se mantivermos a exceção na ilegalidade
cria-se uma série de problemas a quem a admite.
Mantém-se na exceção o seu carácter de excecionalidade.
E a sociedade debruça-se judicialmente sobre cada concretização da exceção e
essa exceção só se justifica quando estão reunidas todas as circunstâncias que
funcionam como atenuante para, em sede de julgamento, haver uma absolvição.
Esse escrutínio judicial deve ser
feito a posteriori?
Deve incidir só sobre situações acontecidas. Agora prever
anteriormente que o Estado tem o dever de responder ao pedido de matar, não.
Isso dissuadiria muitos profissionais de
saúde.
Também não quero acreditar que um pedido a
um profissional de saúde para que ajude alguém a morrer, seja assistindo a um
suicídio seja eutanasiando, se possa transformar numa coisa massiva. Isto é,
não é necessário que muitos profissionais de saúde se deixem dissuadir por
isto. Acho que as coisas se devem manter na dimensão que têm. E o que estamos a
assistir na sociedade portuguesa é ao empolamento de algumas destas questões.
Estou a tentar encontrar uma gaveta para
arrumar isto: despenalizava-se, descriminalizava-se, continuava a ser crime mas
ficava sem pena?
Não é despenalizar, é dizer que tem pena
mas que há circunstâncias atenuantes que retiram a pena. Mas a determinação das
circunstâncias atenuantes é feita, como em relação a todas as coisas que são
crime, em sede de julgamento.
Aquilo que me defende é nesse sentido,
admite que se faça na tal excecionalidade que desenhou mas continua a ser
crime, suscetível de uma investigação.
E de uma penalização. Mas é como digo, uma situação
em que se reúnam todas as condições que justifiquem que a situação aconteça, em
sede de julgamento não há pena, há circunstâncias atenuantes que justificam a
absolvição. Não pode ser confiado ao Estado o direito ou o dever de administrar
a morte a pedido e não pode ser pedido ao Estado o dever de ajuizar sobre como
isso é feito. Em termos de prática e da minha perceção da realidade, o que lhe
posso dizer é que isto não é fácil. Mas nada que tenha a ver com a morte é
fácil. Aliás, nada do que tem a ver com a substancia da vida é fácil. Tudo é
árduo.
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