domingo, 3 de julho de 2016

Pelos caminhos do voluntariado....

Quanto vale o voluntariado?
“Devemos medir o valor económico do voluntariado?” Esta é a pergunta que domina as conclusões do final do encontro “Colocar o voluntariado no mapa económico da Europa”, organizado pelo CEV (Centro Europeu do Voluntariado), em 2008. Trata-se de uma questão crucial, e em nosso entender, bem longe de ser resolvida dentro e fora do mundo do voluntariado e da comunidade académica. O mesmo relatório do CEV dá destaque às argumentações contrárias à avaliação económica do voluntariado e reconhece que a medição financeira do voluntariado deve ser acompanhada e integrada com indicadores e métodos capazes de avaliar a contribuição do voluntariado para a “coesão social, a integração, a inclusão social, a participação ativa, a saúde, o desenvolvimento pessoal, a promoção do capital social e o empoderamento, etc.” (CEV, 2008: 7). Ou seja. É necessário – enfatiza o CEV – desenvolver uma metodologia e instrumentos que tornem visíveis os impactos da filosofia e dos princípios inspiradores do voluntariado” ( [i] ).
O que é o voluntariado, e o que visa? “O voluntariado é o conjunto de ações de interesse social e comunitário realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de projetos, programas e outras formas de intervenção (…)” (Lei 71/98); de imediato, visa ser um serviço às pessoas, às famílias. Mas; e a outro nível, o voluntariado é também a expressão do exercício livre de uma cidadania ativa e solidária, em ambiente de autonomia e pluralismo. Por isso, o Estado português reconhece que o voluntariado tem valor social; e se assumiu como seu promotor, ao definir as bases do seu enquadramento jurídico.
E ainda; o exercício do voluntariado, baseia-se em valores e em princípios que o diferenciam. Valores como a solidariedade, a responsabilidade, a convergência, a gratuidade, a cooperação, a complementaridade e a participação, são suficientemente fortes para que não deva existir qualquer confusão com qualquer outra atividade que tenha como primeira finalidade, a produção de riqueza.
Por exemplo, o voluntariado não é individualista. É solidário. Todo e qualquer cidadão, por si mesmo e com os outros, é responsável pelos outros cidadãos; e pela promoção de cada um deles e de todos, porque todos são dotados de elevada dignidade.
O voluntariado é um exercício gratuito. Por isso, o voluntário não é remunerado, nem pode receber subvenções ou donativos pelo exercício do seu trabalho voluntário.
E também: em Organizações cuja base de operacionalidade se encontra em colaboradores com vinculo laboral ou similar, a atividade voluntária é complementar à dos outros colaboradores; e os voluntários não devem substituir os recursos humanos não voluntários. Para além de que, as motivações de uns colaboradores são completamente diferentes dos outros, implicando diferentes modos de gestão.
Pode aceitar-se que o voluntariado seja medido em termos do seu contributo para a economia. Mas o que vale o voluntariado, não se restringe à economia, à produção de riqueza. O voluntariado vale muito mais que isso. As pessoas valem muito mais que isso. Pode mesmo dizer-se que as pessoas, dada a sua suprema dignidade, pode mesmo dizer-se… que valem mais que todo o ouro do mundo.
Mesmo que o queiramos, não nos fiquemos apenas pelo aspeto do valor económico. Olhemos à volta e vejamos os impactos do exercício do voluntariado: logo, e à partida, nas pessoas. Não apenas em algumas. Vejamos esses impactos, por exemplo nos voluntários, nos beneficiários da ação voluntária, nos outros colaboradores das Organizações de Enquadramento; e nas outras pessoas que de algum modo estão em relação próxima com a atividade, mas que não beneficiam diretamente dela.
Umas pessoas poderão manifestar “que bem que me sinto depois de uma tarde de voluntariado
no Hospital! Foi tão cansativo, mas ao mesmo tempo tão gratificante!” Outras poderão desabafar que “aquela senhora voluntária é tão amorosa, tão compreensiva… ponho-me p’rá qui a falar e ela nunca me manda calar nem dá bitaites. É tão boa companhia! Quando ela está, o tempo passa tão depressa!...”. Outras poderão referir que “dantes não era assim. Desde que há cá um grupo de voluntariado organizado… parece que o serviço até corre melhor. Parece que até na nossa equipa de profissionais, as coisas andam melhor!... Vale mesmo a pena termos voluntariado cá na UCC.” Outras ainda, as menos próximas do projeto de voluntariado, poderão também dizer que “eu não sei bem o que se passa. Mas que mudança terá havido no Centro de Saúde que agora parece que somos tratados com mais simpatia, mais cordialidade; e diga-se mesmo: com mais respeito. Será que a entrada dos voluntários ao serviço foi a gota de água para que as coisas mudassem para melhor?”.
Pois é. É que o valor do voluntariado, não é apenas económico. É também pessoal. É social. E no que concerne ao voluntariado que se realiza no campo da saúde, os aspetos não económicos, são muito mais evidentes. A companhia, o acompanhamento, a ajuda no acesso aos serviços e aos cuidados, a facilitação no desempenho de tarefas básicas da vida diária, mesmo em caso de internamento, em face das reais situações dos beneficiários e ante a evidente disponibilidade dos voluntários, estes aspetos não económicos, digam-se impactos, são por demais valorizados por todos os protagonistas e pelas Organizações. E estas, as Unidades de Saúde, maioritariamente do Serviço Nacional de Saúde, sabem isso e comunicam-no quer por palavras quer por atos.
De facto, no campo da saúde, as posturas e os gestos do voluntariado e dos voluntários, até podem ser irrelevantes em termos materiais ou físicos. Mas a nível cultural, da espiritualidade, dos sentimentos ou das emoções… e também ao nível da terapêutica, o valor aportado à prestação dos cuidados é de uma dimensão que não se pode contar. Trata-se de humanidade. Trata-se de considerar as pessoas, todas as pessoas que se encontram em situações de carência, de desfavor, de fragilidade e diminuídas ou dependentes. A obrigação solidária também passa por certo tipo de atuação que implique respeito pela dignidade dessas pessoas, que contribua para a melhoria do seu bem-estar, da qualidade da sua vida¸ que promova a sua autonomia e a sua liberdade, bem como o seu desenvolvimento pessoal humano e espiritual, no respeito pelas vontades e pelas diferenças.
No campo da saúde, faz sentido medir o valor económico do voluntariado? Na verdade, não sei. O que sei é que se deve estar atento ao assunto. Em termos de Organização, pode ser interessante abordar o assunto. Mas, como se repara, em saúde, os impactos mais evidentes do voluntariado, são muito mais ao nível do que (pelo menos no presente) não se afigura passível de ser medido do que ao contrário. No entanto não é uma coisa má, que as Organizações comecem a fazer o exercício do estabelecimento de objetivos mensuráveis de atuação, a procederem à sua monitorização e à produção de relatórios estatísticos. Isso até pode revelar-se interessante relativamente à valoração das relações e das parcerias com as Unidades de Saúde.
Agora, o que pode ser nefasto no campo da saúde, é haver uma forte dedicação ao aspeto do valor económico do voluntariado descurando os demais impactos (e positivos por demais). Se assim vier um dia acontecer, certamente que valores com a solidariedade, a gratuidade, a disponibilidade; e outros que suportam concetualmente o voluntariado e lhe dão alma, poderão correr o risco de dar lugar ao individualismo, à corrida desenfreada na realização de objetivos, ao mercantilismo; e à perca do sentido de humanidade e do outro. Ora, um dos grandes objetivos do voluntariado no campo da saúde, é a humanização. E sem voluntariado, o contributo para a humanização, afigura-se incompleto. Esse grande contributo passa, não por discursos, mas pela ação diária, próxima e concreta dos voluntários nas Unidades de Saúde.
Qualquer que seja a direção que prossiga a discussão e a implementação do assunto “medição do valor económico do voluntariado”, é importante, e sem o desvalorizarmos, que pelo menos a Federação Nacional de Voluntariado em Saúde e as Organizações que a constituem, evidenciem e reclamem que mais que aquele, o que conta são as pessoas e o valor associado às pessoas e à humanização. No dia em que se pretender medir os sentimentos, as emoções e a dignidade da pessoa, esta perde a sua humanidade.
João António Pereira, presidente da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde.
Porto, 3 de julho de 2016


[i] In.: - Voluntariado em Portugal, contextos, atores e práticas, Fundação Eugénio de Almeida, Évora, s/data.

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