O VOLUNTARIADO SERÁ UMA TRETA?
Ontem, alguma comunicação social noticiou que a coordenadora do
Bloco de Esquerda, Dra. Catarina Martins, teria afirmado também ontem e perante
uma plateia repleta de jovens do partido e simpatizantes… teria afirmado… que o
“trabalho voluntário é uma treta”.
Não conhecemos nem o contexto frásico nem o do desenvolvimento do evento, com a
profundidade suficiente que permita fazer algum juízo sobre a afirmação.
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Dra. Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda |
Não foi afirmado que o voluntariado é uma treta. Foi, isso sim,
afirmado que o “trabalho voluntário é uma
treta”. Apesar da diferença, parece-nos ser suficientemente grave, não a
afirmação em si mesma, mas o impacto que pode vir a ter para o sector do
voluntariado. Esse sim, poderá ser de consequências negativas, não tanto para o
setor nem para as instituições que o compõem, mas mais para os milhares de
cidadãos que generosamente servem e ajudam outros cidadãos, ajuda essa que brota
mais de sentimentos como a partilha, o bem-fazer, a entreajuda, o amor; e
outros tão ou mais nobres quanto estes.
Se o voluntariado fosse uma treta, que não é; todos nós, a tal
multidão que ainda ninguém conseguiu efetivamente contar, seria também ela, uma
treta. E se segundo www.infopedia.pt o
significado de “treta” pode ser “estratagema,
astúcia, palavreado para enganar, lábia, léria ou coisa sem importância”,
então definitivamente, o voluntariado não é uma treta nem nada do que possa ser
seu significado. Também, nem os voluntários são agentes da treta.
A coordenadora do Bloco de Esquerda terá também afirmado que “se é trabalho, tem que ter contrato. Voluntariado é o que as pessoas podem fazer
depois de terem um contrato de 35 horas semanais, quando se querem dedicar
a outra atividade". Ora aqui poderá estar o fulcro da questão. É isso
mesmo: o voluntariado realiza-se no tempo livre, ou seja, no tempo que a cada
cidadão que o pretenda fazer, resta para além do seu desempenho profissional ou
similar. Às tantas existem aspetos que deviam ter sido verbalizados e não
foram. E se o fossem, para além, de prestarem um bom serviço ao voluntariado e
aos voluntários, teriam certamente sido como um “colocar o dedo na ferida”.
Naquela ferida que todos (uns mais e outros menos) sabemos (ou achamos que
sabemos) que existe. É o facto de em nome de algo que está para além daquilo
que é o voluntariado, esta atividade generosa e gratuita, estar a ser usada e
abusada, com claro atropelo da legislação aplicável e a inoperância de quem
deve atuar no sentido do respeito, não só por aquela, mas também e sobretudo,
no sentido do respeito pelas pessoas.
A crise tem sido justificação para muitas atuações que vão no
sentido do que se afirmou antes. Mas não é a única. Muitas são as situações (e
isto não é novidade para quem está atento e envolvido no setor) nas quais os
voluntários são contributo importante e gratuito para a prossecução dos
objetivos de Entidades (privadas e públicas), contributo esse que se traduz no
desempenho, quantas vezes, de funções que configuram postos de trabalho
remunerados. A Lei 71/98 é clara: “o
princípio da complementaridade pressupõe que o voluntário não deve substituir
os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das
organizações promotoras, estatutariamente definidas.”. E a Lei não se
cumpre.
Mas a procura de mão de obra gratuita ou barata, por parte de
entidades empregadoras (mesmo do chamado setor da economia social), não visa
apenas a admissão de voluntários para os fins que são pretendidos. Existem
também outras situações em que tal se verifica e que se encontram perfeitamente
legisladas, “bebendo” aspetos do voluntariado sobre as quais importa estar de
atalaia. Felizmente há entidades (mesmo públicas) que não seguem esse figurino
legislativo, e parecem encontrar-se no alinhamento da afirmação "(…) até lá, só contratos de trabalho".
Cremos que no campo da saúde em Portugal, o voluntariado que é
exercido pelos milhares de voluntários, nomeadamente pelos mais de 12 mil das
mais de 50 Organizações integradas na Federação Nacional de Voluntariado em
Saúde, cremos dizia-se, que ainda não evidencia aspetos que o configurem como
uso de mão de obra gratuita. Cremos. Não temos dados a partir dos quais se
possa produzir afirmação nesse sentido. Sabemos sim, da enorme satisfação que
manifestam todos os agentes (institucionais e pessoais) envolvidos no
voluntariado do campo da saúde, nomeadamente as pessoas.
A Federação Nacional de Voluntariado em Saúde, crê profundamente no primado e na dignidade da
pessoa humana, na humanização dos serviços de saúde, reconhecendo “o valor
social do voluntariado como expressão do exercício livre de uma cidadania ativa
e solidária” em contexto de cooperação, de democracia e de pluralidade; e
confirma que aquele é “o conjunto de ações de interesse social e
comunitário, realizadas de forma desinteressada por pessoas, no âmbito de
projetos, programas e outras formas de intervenção ao serviço dos indivíduos,
das famílias e da comunidade, desenvolvidos sem fins lucrativos por entidades
públicas ou privadas - Lei 71/98”.
Que o acontecimento criado com a afirmação da Dra. Catarina
Martins, mais que ela mesma (a afirmação), seja um bom serviço ao voluntariado,
especialmente para aquele em que o seu exercício implica relação interpessoal
de proximidade, ou seja, o que acontece no campo da saúde e na promoção do
bem-estar das pessoas.
João António Pereira, presidente da Direção da Federação
Nacional de Voluntariado em Saúde