quinta-feira, 10 de novembro de 2016
domingo, 6 de novembro de 2016
O que é proibido
dizer a um doente zangado ?
"Acalme-se !"
Má
comunicação com doentes em situações complicadas cria dificuldades nas unidades
de saúde. Nova sociedade quer resolver o problema melhorando o ensino de
médicos e enfermeiros.
O que é que não se deve dizer a um doente
zangado? “Acalme-se”, exemplifica Irene Carvalho, a presidente da recém-criada
Sociedade Portuguesa de Comunicação Clínica em Cuidados de Saúde (SP3CS), que
destaca a importância da empatia e da humanização na medicina e em todas as
profissões que implicam contacto com doentes.
Socorrendo-se da experiência e de estudos
feitos nos Estados Unidos — onde estas questões merecem grande atenção —, Irene
Carvalho sustenta que as queixas por falhas
na comunicação médico-paciente são muito mais frequentes do que as
reclamações devidas a incompetência técnica. “A maior parte das queixas têm que
ver com problemas de comunicação”, corrobora o enfermeiro Carlos Sequeira, que
acaba de lançar o livro Comunicação clínica e relação de ajuda.
Saber interagir com doentes em situações
complicadas e saber como dar más notícias não implica apenas ter intuição
e bom senso. Há “competências básicas” que devem ser ensinadas aos
profissionais de saúde, atualmente
muito pressionados pela falta de tempo, defende Irene Carvalho que criou a
nova sociedade científica em conjunto com outros profissionais (médicos,
enfermeiros, farmacêuticos, terapeutas, entre outros).
Efeitos nefastos da modernização da medicina
Com a tecnicização e a informatização do
conhecimento e toda a especialização verificada nos
últimos anos, os
profissionais de saúde — e os médicos sobretudo — estão muito focados na cura,
nos órgãos, nos mecanismos fisiológicos, sublinha a psicóloga. Ora se esta
estratégia foi ótima para o desenvolvimento da medicina, acabou por ter alguns
efeitos secundários nefastos na relação com os pacientes, considera.
Se os doentes reclamam por causa de falhas
de comunicação, os profissionais de saúde também se queixam, sobretudo de ter
cada vez menos tempo, de tal forma estão pressionados para usarem computadores
e prestarem atenção aos indicadores. Em Espanha, recorda Irene Carvalho, “os
médicos de família têm sete minutos para estar com os doentes”. Em Portugal,
este limite não existe, mas já houve várias tentativas para impor tempos
máximos, lembra o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva.
Também não será necessário tanto tempo
assim. Numa consulta normal, 25 minutos serão suficientes, acredita a
psicóloga. Como? É possível gerir de forma mais adequada o tempo disponível,
evitando questões de última hora — que contribuem para o arrastar das consultas
—, ou usando técnicas para controlar o discurso dos doentes. Um exemplo:
quando o doente está sistematicamente a repetir as mesmas coisas é porque
entende que o profissional não está a ouvir; neste caso, a técnica é ir
resumindo aquilo que ele vai dizendo.
“Os médicos têm consciência da importância
da comunicação, o consentimento informado trabalha esta questão, mas é bom que
haja um fórum em que tudo isto se discuta. Por vezes o cansaço faz com que
sejam menos felizes na comunicação com os doentes. Mas a verdade é que sem
tempo não há uma boa comunicação”, avisa o bastonário.
Em 2014, o Tribunal de Contas (TdC)
desencadeou grande polémica ao calcular que, se se assumisse como “razoável” o
tempo de 15 minutos para o atendimento, seria possível fazer mais 10,7 milhões
de consultas por ano, e ficaria resolvido o problema da falta de médicos de
família em Portugal . “Foi um momento menos feliz do TdC, reduziu os doentes a
matemática”, lamenta José Manuel Silva.
Em Portugal, não se sabe o que se passa nos
consultórios. Mas, de novo nos EUA, um estudo permitiu perceber que os médicos,
em média, tendem a deixar falar os doentes só 18 a 23 segundos, nas declarações
iniciais. Resultado: 54% das preocupações ficam por abordar e o problema é de
tal forma sensível que os médicos norte-americanos alvo de mais reclamações são
obrigados a fazer cursos de comunicação, sintetiza Irene Carvalho. “É toda
outra mentalidade".
Médicos nem se identificam
Frisando que, em Portugal, “a informação
fornecida ao doente é minimalista e muitas vezes os profissionais nem sequer se
identificam”, Carlos Sequeira insiste que investir na comunicação clínica nem
sequer implica custos acrescidos. “Não são necessárias máquinas, mas apenas
sensibilidade, disponibilidade e recursos humanos”, elenca. Com a “crescente
desumanização” nos serviços de saúde, os doentes ainda são muitas vezes menosprezados
e eles próprios, por razões culturais e de falta de literacia, não reclamam.
“Muitas pessoas ficam doentes por causa das palavras ou da falta delas”,
enfatiza o enfermeiro, para quem a “empatia e a assertividade” são fulcrais
neste processo.
Mas em Portugal pouco se sabe sobre estas
matérias. Conhecidos são os números de milhares de reclamações que em cada ano
são apresentadas por doentes e seus familiares. Os motivos aparecem, todavia,
agrupados em subtipos que não permitem perceber o peso e a dimensão dos
problemas de comunicação.
Por isso é que nos últimos anos as escolas
que ministram cursos de saúde, sobretudo as faculdades de medicina, passaram a
incorporar disciplinas de comunicação clínica, como acontece na Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto, onde Irene Carvalho é professora, e em
várias outras faculdades do país. Uma das tarefas prioritárias da nova
sociedade é justamente fazer um levantamento do que se ensina nas escolas com
cursos de saúde e criar um currículo básico que todos possam integrar.
O que se ensina nestas disciplinas? Por
exemplo, a entrevistar os doentes, porque aprender a começar e a encerrar a
conversa é fulcral. São feitas simulações com alunos, com atores contratados, e
mais tarde com doentes, em duas salas contíguas designadas como “laboratório”.
Os professores observam para depois corrigirem o que está a ser feito de errado
durante a entrevista.
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/o-que-e-que-nao-se-dev-dizer-a-um-doente-zangado-acalmese-1750121?page=-1
E nós, voluntários do campo da saúde, que dizemos aos doentes quando os encontramos zangados? Ou doridos. Ou angustiados. Que lhes dizemos nós? Ou apenas estamos - em presença efetiva e total, claro. Face ao texto que aqui se reproduz, convido-vos a que façais o exercício da reflexão sobre o tema. Também nós, voluntários, somos importantes para os doentes. Somos parte da comunidade da Unidade de Saúde. Somos aqueles e aquelas que temos todo o tempo do mundo, simplesmente para estar. Se conseguirmos fazer isto, bem feito, creio que já estaremos a prestar uma excelente ajuda à pessoa que sofre, ao nosso irmão ou à nossa irmã, afinal cidadãos como nós que apenas se encontram em situação de fragilidade quase sempre total.
Porto, 6 de novembro de 2016, João António Pereira, presidente em exercício, da Direção da Federação Nacional de Voluntariado em Saúde.
sábado, 5 de novembro de 2016
O VOLUNTARIADO
PODE SER MÃO DE OBRA GRATUITA!
Há dias, em razão do desempenho do cargo,
participei como convidado numa iniciativa do âmbito da economia social e das
coletividades. Aí foi feita alguma analogia entre a atividade organizativa, do exercício
dos poderes; e da gestão ou de administração das pessoas coletivas de direito privado
sem finalidade lucrativa, nomeadamente as na forma de associação, com as entidades
do poder local, freguesias e municípios, pessoas coletivas de direito público;
sendo mesmo realçada a importância da participação nos Órgãos Sociais e na vida
das coletividades, que por isso mesmo, promove e possibilita uma das melhores
aprendizagens ao nível da participação cívica dos cidadãos na vida das
Organizações da Sociedade Civil, resultando daí, o surgimento de potenciais e
bons candidatos aos Órgãos do Poder Local. Até aqui tudo bem. Mas eis senão
quando hoje…
Em www.zap.aeiou.pt
dou de caras com a peça jornalística intitulada “Há 38 mil desempregados a trabalhar por 80 euros por mês, nas
autarquias”. E diz mais: “As câmaras municipais tiveram ao seu serviço
cerca de 38 mil desempregados, colocados pelos Centros de Emprego, a trabalhar
por uma bolsa mensal de pouco mais de 80 euros, ao longo de 2015. As autarquias
assumem que são funcionários essenciais e os sindicatos falam em “escravatura
dos tempos modernos”. E
adianta também que “a situação foi
denunciada pelo Bloco de Esquerda (BE) e é reportada pela TSF,
que avança que, durante 2015, o Instituto do Emprego e Formação Profissional
(IEFP) colocou 38 mil pessoas a trabalhar nas autarquias através dos
chamados Contratos Emprego-Inserção (CEI).”
Outra vez o Bloco
de Esquerda. Ou outra vez, se anda a falar de emprego, de desemprego e do uso
de mão de obra barata ou gratuita? Então é assim: os números que são avançados e
por quem os publicitou, são dados como oficiais e como coincidentes com o número de
desempregados (38 mil) que os Centros de Emprego colocaram em 2015, ao abrigo
dos chamados Contratos de Emprego – Inserção (CEI’), mas não apenas nas Autarquias
Locais. Nestas, terão sido colocados 12 mil; mas nas IPSS’ – Instituições Particulares
de Solidariedade Social, foram muito mais. Terão sido colocados 18 mil. Se se fica a saber que no referido ano, os
desempregados colocados ao abrigo dos CEI terão representado “mais de um terço dos 110 mil funcionários
que trabalham de forma tradicional” para as autarquias, já o mesmo não se pode dizer relativamente às IPSS' porque não existe informação a esse respeito.
Estaremos perante
uma situação que não se pretende, e que tem alguma particularidade que
interessa apontar. Ou seja. As Organizações representativas dos trabalhadores
alegam que os CEI’ “são usados de forma
abusiva”. A Provedoria de Justiça tem vindo a acusar o “Estado de abusar do
trabalho de desempregados (…). Continua a receber queixas (…) e encontra-se a
acompanhar o assunto”, tendo já mesmo aberto procedimentos de queixa. Por
outro lado, para as autarquias, apesar de admitirem “que os números revelados (…) são altamente significativos", (não se podendo portanto, esconder o sol com a peneira) também admitem que “estas pessoas fazem
falta às autarquias e, se tivessem sucesso nas funções, devia ser possível contratá-las
findo o CEI”, já que, também reconhecem, que os “CEI foram criados com o objetivo de minorar a subida exponencial do
desemprego e manter as pessoas ativas mesmo sem um trabalho formal.”. Mas…
o STAL – Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local vem dizer “que estes desempregados tapam
"necessidades permanentes" e trabalham em inúmeros tipos de funções
nas autarquias.”, antes desempenhadas pelos chamados “trabalhadores tradicionais”. E que se passa no que respeita aos
CEI’ nas IPSS’? Mais uma vez nada sabemos. Mas que pode ser (ou vir a ser) terreno fácil para
o uso (mau uso) dos desempregados em situação de CEI, lá isso pode. Não estamos imunes a
isso.
E agora pergunto:
mas porquê esta abordagem acerca dos CEI’? Se bem se recordam, também da parte
do BE, a sua coordenadora afirmou mais ou menos em abril deste ano, que “o trabalho voluntário é uma treta”,
altura em que eu, também neste local, escrevi que a Dra. Catarina Martins não havia
afirmado que o “voluntariado é uma treta”,
e mostrei preocupação quanto ao impacto da afirmação (a efetivamente feita)
para o voluntariado. Pois é. É que as coisas podem andar todas ligadas e volta
e meia, sejam eles desempregados, sejam CEI’ ou ASU’ (Atividades Socialmente
Úteis), sejam mesmo os voluntários dos muitos e de qualquer setor, podem
tornar-se em presas fáceis no que toca a usar mão de obra a baixo custo ou
gratuita. E quando falo gratuita estou mesmo a referir-me aos voluntários. E
mesmo aos voluntários do campo da saúde? Claro que sim.
E é verdade (ou
pode ser verdade). Em todas as situações que antes referi, os voluntários,
podem ser mesmo a presa mais fácil quer por razões financeiras quer, talvez
mais vezes, por razões sobretudo ligadas ao desejo de fazer o bem e não se dar
conta que esse bem (ou essa função) é típica do “trabalhador tradicional” e não
e de qualquer voluntário, embora a hipótese de confusão de papéis seja mais
frequente ao nível das funções de operacionalidade (assistentes operacionais) ou
auxiliares.
Mas em todas as
situações. Seja nas Autarquias, seja nas IPSS’, seja em outras Organizações da
Economia Social… todos nós voluntários, coordenadores, técnicos e dirigentes,
devemos (temos que) estar atentos ao que se passa, por razões de respeito por
todos e por cada colaborador, na sua especificidade e na sua diferença, mas, e
muito mais, pelo respeito que a todos obriga que se tenha pela pessoa, quer
seja em contexto organizacional quer não. Se queremos humanizar temos que ser humanos.
Temos que ter posturas e práticas que dignifiquem, não apenas as Organizações,
mas, e acima de tudo, as pessoas, voluntários e beneficiários.
E isso passa muito e também, pelo cumprimento da legislação sobre o voluntariado que é muito clara quando se refere ao princípio da complementaridade e diz “o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.”. Ou seja, o voluntário não executa o que executa o “trabalhador tradicional”. Está para além daquele. Contrariamente ao que canta a Adelaide Ferreira, o voluntário, (na maioria das situações) não tem o papel principal. Complementa o trabalho daquele. Aporta algo mais (o que não é mensurável) ao trabalho daquele e com isso faz com que o resultado final seja superior ao que seria se não existisse o contributo do voluntário.
E isso passa muito e também, pelo cumprimento da legislação sobre o voluntariado que é muito clara quando se refere ao princípio da complementaridade e diz “o voluntário não deve substituir os recursos humanos considerados necessários à prossecução das atividades das organizações promotoras, estatutariamente definidas.”. Ou seja, o voluntário não executa o que executa o “trabalhador tradicional”. Está para além daquele. Contrariamente ao que canta a Adelaide Ferreira, o voluntário, (na maioria das situações) não tem o papel principal. Complementa o trabalho daquele. Aporta algo mais (o que não é mensurável) ao trabalho daquele e com isso faz com que o resultado final seja superior ao que seria se não existisse o contributo do voluntário.
Afinal a Lei é
tão clara e o seu cumprimento é tão fácil. Basta a firme vontade (boa vontade)
e a implementação de boas políticas e bons programas de voluntariado? Não. Ou
melhor: sim, isso é importante. Mas não basta.
É também necessário que cada vez mais seja exercida verdadeira vigilância (para não dizer fiscalização) sobre a atividade do voluntariado. Até a algum tempo não se sabia a quem competia esse papel. Mas hoje sabe-se. A fiscalização do cumprimento da legislação do voluntariado é atribuição da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho. Que cumpramos e não tenhamos receio de ser fiscalizados. Mesmo no campo da saúde.
É também necessário que cada vez mais seja exercida verdadeira vigilância (para não dizer fiscalização) sobre a atividade do voluntariado. Até a algum tempo não se sabia a quem competia esse papel. Mas hoje sabe-se. A fiscalização do cumprimento da legislação do voluntariado é atribuição da ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho. Que cumpramos e não tenhamos receio de ser fiscalizados. Mesmo no campo da saúde.
Porto, 5 de
novembro de 2016, João António Pereira, presidente (em exercício) da Direção da
Federação Nacional de Voluntariado em Saúde
Fonte: http://zap.aeiou.pt/ha-38-mil-desempregados-a-trabalhar-por-80-euros-por-mes-nas-autarquias-136671
terça-feira, 1 de novembro de 2016
Estas conversas
são o abrigo de quem está na rua
MARGARIDA DAVID
CARDOSO
30/10/2016 - 09:00
A
Associação Conversa Amiga surgiu há dez anos com o objetivo de combater a
exclusão e a solidão de quem dorme nas ruas de Lisboa. E fá-lo conversando.
Hoje, dá às pessoas que acompanha um local próprio e seguro, companhia e saúde.
Está há um ou dois dias atracado no
terminal de passageiros de Santa Apolónia. “Uns vão, outros vêm”, perde-se a
conta. R não se cansa de admirar o enorme cruzeiro. Gostava muito de entrar num
destes. Talvez fazer um cruzeiro.
Será agora a sua vez? Afinal não. “Eu tenho
tempo, quando a Joana puder”, afirma. R tem 33 anos e uma história dura que o
trouxe para a rua. Vive em situação de sem abrigo há um mês, o suficiente para
os seus caminhos se terem cruzado com os da Associação Conversa Amiga (ACA).
Esta é uma terça-feira como todas há mais
de dois anos. Joana Teixeira, psicóloga comunitária, chega às 12h30 a Santa
Apolónia para responder às dúvidas das pessoas em situação de sem abrigo que a
associação acompanha. “Às vezes vimos só conversar.” Antes esteve em Arroios,
desde as 10h30.
- Bom dia, está tudo bem? Amanhã vai lá à
consulta?
Joana conhece os horários dos compromissos
de quem acompanha. Sabe-lhes os nomes, os hábitos e as histórias de cor.
“Começamos muitas vezes a falar sobre coisas triviais e a conversa
desenrola-se. Conversamos sobre coisas que nos levam a ir fazer o cartão
do cidadão, ajudar nos pedidos de rendimentos, articular com a segurança social
ou pedir um quarto.” Dar a conhecer os direitos de quem acha que os perdeu ou
não sabe que os tem é uma grande parte do seu trabalho.
Esta terça-feira, já combinou com três
pessoas tratar da renovação do cartão do cidadão e na quinta-feira lá estará
com M para tratarem da sua entrada num centro de alojamento. Mas estas conversas
não se ficam pelo círculo informal. A ACA encaminha os casos – que sinaliza nas
acções de rua – para o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA),
onde Joana se torna formalmente a gestora de caso. Actualmente, acompanha 45
pessoas.
Quando chega a Santa Apolónia, um grupo de
cerca de dez pessoas espera. Guardam a vontade de falar.
A conversa é a base de todo o
trabalho. “Às vezes pensamos erradamente sobre as coisas que eles
precisam.” Como podem saber o que se precisa quem vive na rua, sem ouvir quem
lá está?
Faz três anos que, destas conversas,
perceberam a dificuldade que estas pessoas tinham em guardar os seus
pertences. Daí surgiram os cacifos solidários, destinados a quem dorme na
rua – para já, perto das zonas de Arroios e Santa Apolónia. São 24 cacifos,
existentes desde Outubro de 2013, numa iniciativa apoiada pela Câmara Municipal
e por uma campanha de crowdfunding.
Até ao final do ano, a associação espera
ter mais 36 na rua, para
completar a rede de 60 cacifos na cidade. Doze no Cais do Sodré,
outros tantos no Oriente e no Rossio – nestes dois últimos locais o
impasse com as juntas de freguesia mantêm-se.
Como destaca Duarte Paiva, presidente da
ACA, os cacifos são um “local seguro e digno” que permite ampliar a rede de
apoio: “Este projecto permite-nos ter um acompanhamento regular com cada vez
mais pessoas e vimos que mais de 40% dos casos saíram da rua”. Quem os utiliza
assina um contracto e compromete-se, a todas as terças-feiras, vir sentar-se à
conversa com as psicólogas.
Estes armários amarelos nunca são
revistados e as chaves são trocadas sempre que mudam de dono. Nos atuais 24
cacifos, já passaram 47 pessoas.
Para o sr. A, de “50 e tal anos”, os
cacifos foram “uma ideia mágica”. É lá que guarda “a casa” antes de ir
trabalhar. Assim, durante o dia, nem se lembra que dorme na rua. “Assim sei que
as minhas coisas estão seguras e limpas. Ninguém rouba, nem a Câmara tira”.
No sábado passado, quando os voluntários
chegam para conversar, o sr. A sorri e farta-se de sorrir. Esta não parece uma
noite triste.
Um amigo
Era Natal, daqueles frios em que a
solidariedade também nos aquece. Duarte Paiva, na altura estudante de
arquitectura, foi entregar comida e roupa na rua. Percebeu aí: “Estas pessoas
têm comida e roupa, mas isso não lhes chega.”
Nessa altura, veio-lhe à memória um senhor
que dormia na rua, junto à casa onde morava, nos Açores.Tinha oito anos quando
decidiu ir entregar-lhe comida: “Ele perguntou-me se o que levava era pão.
Olhou-me com tal desdém que eu deixei o saco no chão e fui a correr para casa.
Se calhar, eu dar-lhe pão era uma humilhação. O que é que ele queria?”
A pergunta cresceu com Duarte e, naquele
Natal, foi capaz de lhe dar uma resposta: “Percebi que havia uma coisa muito
importante que eu tinha para dar: o meu tempo.” Criou um blogue e convidou
outros a virem conversar, nas ruas de Lisboa, com as pessoas que encontrassem a
dormir na rua. Oferecia-lhes chá como pretexto para se sentar à sua beira.
Percebeu que a conversa as satisfazia mais do que o alimento.
Onze anos depois, é ainda assim que
funciona “Um sem abrigo, um amigo”, um dos sete projectos da ACA. “Há muitos
grupos que distribuem comida e roupa. Todos essenciais, mas a conversa também o
é. Nenhuma associação substitui a outra”, afirma.
Dois sábados por mês, às 20h, as quatro
equipas de voluntários segue para a rua. Para Santa Apolónia, Oriente, Arroios
e outra para o Cais do Sodré. O objectivo? Combater a exclusão e a solidão na
rua. Compreender as pessoas. Ouvi-las.
“No início, às vezes, berram connosco. Só
às vezes”, ri-se Duarte. “Mas à medida que vamos construindo esta relação de
paridade, as pessoas conversam e abrem-se connosco.” Tudo começa com o contacto
simples. A horizontalidade na fala, no modo de tratar o outro. Os laços que se
criam são o grande triunfo da acção nas ruas.
Foi a partir deste projecto, criado um ano
antes, que em 2006 surgiu a ACA. Hoje, a associação tem cinco pessoas em
trabalho a tempo inteiro: Duarte, o presidente, Joana Teixeira, a psicóloga
comunitária, Joana Guerreiro, psicóloga clínica, Joana Feliciano, na
comunicação e marketing, e Diana Silva, enfermeira
nos Quiosques da Saúde.
Aos voluntários exige-se brio.
Responsabilidade. Humanidade. Ninguém sai para a rua sem passar pela selecção e
formação, 20 horas no total. Há uma “lição” que Joana olha com “mais carinho”:
porque devem dizer “pessoa em situação de sem abrigo” e não “sem abrigo” -
porque “a condição de sem abrigo não as define como pessoas”, explicava mais
tarde Guilherme Pereira, de 24 anos. Um dos 43 voluntários do projecto.
A casa de Santa Apolónia
- Limpem os pés antes de entrar que ainda
hoje aspirei – graceja o sr. J. Não deixa que os voluntários se sentem no chão.
“Tenho muitos sofás”, diz, ao distribuir cobertores.
São quatro voluntários no grupo de Santa
Apolónia deste sábado: Guilherme, nutricionista, Maria José Felgueiras,
professora de inglês, Mónica Correia, psicóloga, e Pedro Faria, médico. Noutros
grupos há também empresários, estudantes, militares. Mónica é a
coordenadora da equipa e veio de propósito para a lateral da estação para ver como
estavam o sr. J e o sr. A. Da outra vez tinham-na deixado preocupada.
O sr. J, de 45 anos, já leu o livro que lhe
levaram. E quer mais. “Claro que isto não era o que a gente queria. Mas desde
que me dêem livros, a vai-se aguentado.” Desde que não sejam de Saramago
ou José Rodrigues dos Santos, prontifica-se a acrescentar. Já deu uma boa
oportunidade a ambos, mas “quem pode gostar de Rodrigues dos Santos depois de
ler Dan Brown?”, pergunta.
Ainda há-de escrever um livro. Ele é que
diz e Guilherme concorda. “Não uma autobiografia, uma autocrítica: sobre as
peripécias.” Talvez também sobre as viagens e sobre os trabalhos: no matadouro,
nas empilhadoras, nos camiões, numa grande empresa. E sobre a heroína. Depois,
sobre o vício que acabou numa das ilhas do Atlântico. Nunca mais lhe tocou.
Desde que voltou a Lisboa, pede o mesmo que
pediu nos Açores: “Não pedi rendimento, pedi um quarto.” Quer deixar o
"número 1 da Rua da Amargura.”
Os voluntários começam a conhecer-lhes as
dinâmicas - ainda que em Santa Apolónia as caras mudem com muita frequência. As
namoradas, os amigos, a literatura, o cinema, o jornal do dia. A vida como ela
é, mas na rua.
- Já vão? Fiquem para o serão – diz o sr.
J. À saída, pede aos voluntários que fechem a porta, dá corrente de ar. Também
há-de mandar consertar a janela da sua casa na rua.
Por volta das 22h, em frente à estação,
serve-se o chá de baunilha e caramelo, uns copos atrás dos outros, e desejos de
boa noite. Os voluntários seguem para o viaduto, o “Palácio de Inverno” do sr.
J e o sr. A quando a chuva insiste em cair.
- Estas são dores que não interessam nem
aos animais - conta a Pedro um outro sr. J, de 71 anos.
Cedo perceberam que havia uma falha
“urgente” a colmatar: o acesso a cuidados de saúde, ainda que primários. “A
maioria das pessoas que acompanhamos não têm acesso a um médico de família ou
não têm como se deslocar a até ele”, nota Sofia Remtula, médica e coordenadora
do projecto “Saúde na Rua”. A equipa que coordena tem quatro médicos que a cada
sábado acompanham os voluntários do “Um sem abrigo, um amigo”.
Pedro é o médico de serviço em Santa
Apolónia. Esta noite, mediu por três vezes a tensão e entregou alguns compridos
para as dores. Algumas só a conversa cura.
Já passava das 23h, a hora em que está
previsto acabarem as conversas, mas o grupo ainda tem que passar pelo outro
lado do viaduto, para ver se alguém está acordado. Sim, um outro sr. J está
desperto. Mónica pergunta sempre se se pode sentar. “Não se pode entrar sem
pedir no espaço de outra pessoa, mesmo que seja na rua”, já tinha contado.
Senta-se à conversa.
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