A CARIDADE E A CIDADANIA
“Ou
como os voluntários são agentes da caridade”
Por estes dias li uma peça jornalística – entrevista, publicada
num Órgão da Comunicação Social de grande tiragem em Portugal, em que a pessoa
entrevistada – distinta personalidade com responsabilidades no voluntariado, em
âmbito nacional, afirmou a certa altura que “estamos a evoluir da caridade
para o voluntariado”. Louvo a iniciativa e o facto de uma vez mais o
voluntariado ser razão de notícia. No entanto, fiquei muito sensibilizado com a
afirmação que citei.
Como se sabe, o texto escrito não é audível enquanto tal e
só comunica por palavras e pela pontuação. Por isso é impossível fazer qualquer
leitura, por exemplo sobre qual teria sido a intenção da afirmação,
considerando-se que não raras vezes se alude à caridade como algo menor ou
mesmo com sentido depreciativo. Na peça a que faço referência, tal não me
parece que tenha acontecido, pelo conhecimento que tenho sobre a pessoa
entrevistada.
Independentemente das práticas, das vontades e da história,
parece-me que caridade “casa” muito bem com voluntariado, e muito mais ainda
com cidadania. Possivelmente não tanto com solidariedade, mas mais com
cidadania, tenho quase a certeza. E não podemos nem devemos, nem querer omitir
nem negar as nossas raízes judaico-cristãs, que são o ar que respiramos e o
espírito que nos anima.
Segundo a Wikipédia, “Caridade é
um sentimento ou
uma ação altruísta de ajuda a alguém sem busca de qualquer recompensa.
A prática da caridade é notável indicadora de elevação moral e uma das
práticas que mais caracterizam a essência boa do ser humano, sendo, em alguns
casos, chamada de ajuda humanitária”.
Por outras palavras (que são as minhas), a caridade poderá
ser a concretização ou o comportamento, impelidos a partir de atitude amorosa
que formata cada pessoa, mesmo não explicitamente crente em alguma divindade. É
parte de nós – pessoas, está em nós, e se cultivarmos essa predisposição
interior e a consequente prática para o serviço ao outro, aos outros - à
comunidade, esse conceito ou concretização, que muito se quer apelidar seja do
que for, mas que por mais voltas que se deem, é e será sempre: a caridade.
Assistimos ao aparecimento de eufemismos como o conceito de
solidariedade, claramente muito mais light, que não compromete e pretensamente
não estará assim não enraizado na nossa história. Hoje é mais in ser solidário que
ser caridoso. São sinais dos tempos.
A caridade é muito mais do que alguma vez alguém possa imaginar.
Se por um lado é uma característica que não se pode apagar, por outro, é um
compromisso que cada pessoa em si mesma e face aos outros – à comunidade, faz acontecer em si e assume.
A caridade é um dom gratuito, que se recebe, que se
incorpora e se dá. Essa gratuidade faz com que quem serve, o faça sem esperar
qualquer tipo de recompensa, nem mesmo em outra situação existencial que não a
material.
A caridade acontece no seio da disponibilidade interior e
prática, disponibilidade essa que nos faz estar atentos, de alerta ou de
atalaia aos sinais, às necessidades e às carências objetivas, digamos, oportunidades
de servir.
A caridade exercita-se em contexto de responsabilidade. Não
só responsabilidade pessoal mas também coletiva – a das organizações. Não é
ajuda que se presta sem competência mas no sentido do bem bem feito e que
satisfaça.
A caridade é convergente e comunga dos conceitos pessoais
mas também comunitários, queridos e assumidos, e acontece em âmbito e no sentido da comunhão, comunhão essa que dá força e vivifica, pessoal e comunitariamente.
A prática da caridade, quer ela tenha origem pessoal, quer
na comunidade, ela é sempre promotora de desenvolvimento pessoal e social, e
traz consigo mais-valias humanas e espirituais que marcam indelevelmente.
A caridade é amor, e a sua vivência, sendo uma relação de
amor, também é e promove o entrosamento e o engajamento dos seus agentes e destinatários,
criando assim verdadeiras redes sociais e humanas que dificilmente serão desfeitas
porque criadas em amor.
Então, e a cidadania?
Segundo a Wikipédia, a cidadania “é o conjunto de direitos e
deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive”.
Tem portanto a ver com os cidadãos – as pessoas, em contexto de
sociedade, claramente mais visível em democracias.
Segundo o conceito, o ambiente de cidadania pode definir-se
como a prática continuada dos direitos e dos deveres dos cidadãos e da
sociedade civil, com o objetivo do bem comum.
Cidadania ativa significa, antes de mais nada, o
envolvimento ativo dos cidadãos na participação na vida das suas comunidades e,
dessa forma, na democracia, no que respeita à atividade e tomadas de decisão. As
atividades de voluntariado são uma expressão de cidadania ativa. No entanto, a
participação cívica ativa não se esgota na prática do voluntariado.
A iniciativa da prática do voluntariado, tem lugar nos
cidadãos – as pessoas, que interiorizam que têm o dever de contribuir para o bem-estar
e para a felicidade das outras pessoas e da sociedade, e se comprometem nisso mesmo.
Essa prática não dispensa a responsabilidade, a disponibilidade, a gratuidade e
a convergência de conceitos e de práticas. É na prestação de um serviço ou de
um cuidado, em que todos os intervenientes se sentem satisfeitos, nomeadamente
os beneficiários, que devemos “medir” os impactos e a validade positiva do voluntariado.
Mas que têm a ver, voluntariado e cidadania, com caridade?
Talvez não seja eu a melhor fonte de saber de modo a dar a
explicação mais acertada sobre o assunto. Mas o que sinto é que quando nos
referimos a cidadãos, não estamos a referir-nos apenas a indivíduos contáveis,
mas a pessoas, não a seres desumanizados mas a seres humanos, seres de algum
modo superiores dotados de dignidade que devemos e queremos considerar e que
amamos. Porque é aí e por aí, que o amor faz sentido e a caridade acontece.
É interessante o percurso histórico e cultural que a
sociedade e a humanidade têm feito ao longo dos tempos, que levam a que por
exemplo, a que hoje as pessoas sejam cidadãos e que o contexto humano e societário em que
existem, vai incorporando valores e conceitos como o amor, a fraternidade e a
compaixão.
Assim sim. Continua a fazer sentido realizar a caridade com
tudo o que isso possa implicar. A caridade não é conceito estéril e bolorento.
Continua a ser um espírito e uma prática que anima e dá força, que visa o
bem-estar e a felicidade das pessoas e da sociedade.
À cidadania, chamar-lhe-ia eu, a nova caridade. Não que
desta, haja uma velha e uma nova. Mas sempre a mesma, mas com outro rosto,
outros rostos e outras dimensões, talvez com mais autenticidade e verdade, e mais disseminada.
Se a prática ativa da cidadania pode passar pela prática do
voluntariado e não se esgota aí, então por maioria de razão, o voluntariado é,
a meu ver, a prática da caridade. Sim, caridade “casa” muito bem com voluntariado
e com cidadania.
Os voluntários, essa multidão que ninguém ainda conseguiu contar,
acabam por ser nos tempos que são os de hoje, os grandes agentes da caridade e
da cidadania. Mormente no campo da saúde, são eles – os voluntários, também grandes
obreiros do contributo para o bem-estar e para a qualidade de vida e dos
cuidados nas Unidades de Saúde e fora delas, não realizando o que não lhes compete mas o que é o seu múnus.
Muitos são os utentes dos Serviços, familiares e outros,
para quem a presença mais amiga, mais fraterna e mais amorosa para com eles, é
precisamente a dos voluntários e das voluntárias, quais anjos de bata amarela
(e de outras cores).
Segundo a peça a que aludi, a personalidade entrevistada
afirmou que “o voluntariado
não pode substituir postos de trabalho. E isso acontece, por vezes. Quando se
fazem inspeções, verifica-se isso. Não nos compete fiscalizar, mas temos
notícia que isso acontece. O voluntariado é para acrescentar, não é para ocupar
o posto de trabalho de ninguém. "Há um grande risco e é preciso estar
muito atento. Não somos nós que fazemos a fiscalização, é a Segurança Social, e
é preciso que fique muito claro que um voluntário é um voluntário, não é um
trabalhador da empresa”.
Na sua singularidade, informalidade mas com
responsabilidade, competência e sentido do dever, aí estão os voluntários da
saúde, sempre solícitos para atender às necessidades e carências reveladas,
quais agentes do amor e da caridade fraterna.
Bem-hajam!
João António Pereira