domingo, 19 de janeiro de 2014

A CARIDADE E A CIDADANIA
“Ou como os voluntários são agentes da caridade”

Por estes dias li uma peça jornalística – entrevista, publicada num Órgão da Comunicação Social de grande tiragem em Portugal, em que a pessoa entrevistada – distinta personalidade com responsabilidades no voluntariado, em âmbito nacional, afirmou a certa altura que “estamos a evoluir da caridade para o voluntariado”. Louvo a iniciativa e o facto de uma vez mais o voluntariado ser razão de notícia. No entanto, fiquei muito sensibilizado com a afirmação que citei.
Como se sabe, o texto escrito não é audível enquanto tal e só comunica por palavras e pela pontuação. Por isso é impossível fazer qualquer leitura, por exemplo sobre qual teria sido a intenção da afirmação, considerando-se que não raras vezes se alude à caridade como algo menor ou mesmo com sentido depreciativo. Na peça a que faço referência, tal não me parece que tenha acontecido, pelo conhecimento que tenho sobre a pessoa entrevistada.
Independentemente das práticas, das vontades e da história, parece-me que caridade “casa” muito bem com voluntariado, e muito mais ainda com cidadania. Possivelmente não tanto com solidariedade, mas mais com cidadania, tenho quase a certeza. E não podemos nem devemos, nem querer omitir nem negar as nossas raízes judaico-cristãs, que são o ar que respiramos e o espírito que nos anima.
Segundo a Wikipédia, Caridade é um sentimento ou uma ação altruísta de ajuda a alguém sem busca de qualquer recompensa. A prática da caridade é notável indicadora de elevação moral e uma das práticas que mais caracterizam a essência boa do ser humano, sendo, em alguns casos, chamada de ajuda humanitária”.
Por outras palavras (que são as minhas), a caridade poderá ser a concretização ou o comportamento, impelidos a partir de atitude amorosa que formata cada pessoa, mesmo não explicitamente crente em alguma divindade. É parte de nós – pessoas, está em nós, e se cultivarmos essa predisposição interior e a consequente prática para o serviço ao outro, aos outros - à comunidade, esse conceito ou concretização, que muito se quer apelidar seja do que for, mas que por mais voltas que se deem, é e será sempre: a caridade.
Assistimos ao aparecimento de eufemismos como o conceito de solidariedade, claramente muito mais light, que não compromete e pretensamente não estará assim não enraizado na nossa história. Hoje é mais in ser solidário que ser caridoso. São sinais dos tempos.
A caridade é muito mais do que alguma vez alguém possa imaginar. Se por um lado é uma característica que não se pode apagar, por outro, é um compromisso que cada pessoa em si mesma e face aos outros – à comunidade, faz acontecer em si e assume.
A caridade é um dom gratuito, que se recebe, que se incorpora e se dá. Essa gratuidade faz com que quem serve, o faça sem esperar qualquer tipo de recompensa, nem mesmo em outra situação existencial que não a material.
A caridade acontece no seio da disponibilidade interior e prática, disponibilidade essa que nos faz estar atentos, de alerta ou de atalaia aos sinais, às necessidades e às carências objetivas, digamos, oportunidades de servir.
A caridade exercita-se em contexto de responsabilidade. Não só responsabilidade pessoal mas também coletiva – a das organizações. Não é ajuda que se presta sem competência mas no sentido do bem bem feito e que satisfaça.
A caridade é convergente e comunga dos conceitos pessoais mas também comunitários, queridos e assumidos, e acontece em âmbito e no sentido da comunhão, comunhão essa que dá força e vivifica, pessoal e comunitariamente.
A prática da caridade, quer ela tenha origem pessoal, quer na comunidade, ela é sempre promotora de desenvolvimento pessoal e social, e traz consigo mais-valias humanas e espirituais que marcam indelevelmente.
A caridade é amor, e a sua vivência, sendo uma relação de amor, também é e promove o entrosamento e o engajamento dos seus agentes e destinatários, criando assim verdadeiras redes sociais e humanas que dificilmente serão desfeitas porque criadas em amor.
Então, e a cidadania?
Segundo a Wikipédia, a cidadania “é o conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive”. Tem portanto a ver com os cidadãos – as pessoas, em contexto de sociedade, claramente mais visível em democracias.
Segundo o conceito, o ambiente de cidadania pode definir-se como a prática continuada dos direitos e dos deveres dos cidadãos e da sociedade civil, com o objetivo do bem comum.
Cidadania ativa significa, antes de mais nada, o envolvimento ativo dos cidadãos na participação na vida das suas comunidades e, dessa forma, na democracia, no que respeita à atividade e tomadas de decisão. As atividades de voluntariado são uma expressão de cidadania ativa. No entanto, a participação cívica ativa não se esgota na prática do voluntariado.
A iniciativa da prática do voluntariado, tem lugar nos cidadãos – as pessoas, que interiorizam que têm o dever de contribuir para o bem-estar e para a felicidade das outras pessoas e da sociedade, e se comprometem nisso mesmo. Essa prática não dispensa a responsabilidade, a disponibilidade, a gratuidade e a convergência de conceitos e de práticas. É na prestação de um serviço ou de um cuidado, em que todos os intervenientes se sentem satisfeitos, nomeadamente os beneficiários, que devemos “medir” os impactos e a validade positiva do voluntariado.
Mas que têm a ver, voluntariado e cidadania, com caridade?
Talvez não seja eu a melhor fonte de saber de modo a dar a explicação mais acertada sobre o assunto. Mas o que sinto é que quando nos referimos a cidadãos, não estamos a referir-nos apenas a indivíduos contáveis, mas a pessoas, não a seres desumanizados mas a seres humanos, seres de algum modo superiores dotados de dignidade que devemos e queremos considerar e que amamos. Porque é aí e por aí, que o amor faz sentido e a caridade acontece.
É interessante o percurso histórico e cultural que a sociedade e a humanidade têm feito ao longo dos tempos, que levam a que por exemplo, a que hoje as pessoas sejam cidadãos e que o contexto humano e societário em que existem, vai incorporando valores e conceitos como o amor, a fraternidade e a compaixão.
Assim sim. Continua a fazer sentido realizar a caridade com tudo o que isso possa implicar. A caridade não é conceito estéril e bolorento. Continua a ser um espírito e uma prática que anima e dá força, que visa o bem-estar e a felicidade das pessoas e da sociedade.
À cidadania, chamar-lhe-ia eu, a nova caridade. Não que desta, haja uma velha e uma nova. Mas sempre a mesma, mas com outro rosto, outros rostos e outras dimensões, talvez com mais autenticidade e verdade, e mais disseminada.
Se a prática ativa da cidadania pode passar pela prática do voluntariado e não se esgota aí, então por maioria de razão, o voluntariado é, a meu ver, a prática da caridade. Sim, caridade “casa” muito bem com voluntariado e com cidadania.
Os voluntários, essa multidão que ninguém ainda conseguiu contar, acabam por ser nos tempos que são os de hoje, os grandes agentes da caridade e da cidadania. Mormente no campo da saúde, são eles – os voluntários, também grandes obreiros do contributo para o bem-estar e para a qualidade de vida e dos cuidados nas Unidades de Saúde e fora delas, não realizando o que não lhes compete mas o que é o seu múnus.
Muitos são os utentes dos Serviços, familiares e outros, para quem a presença mais amiga, mais fraterna e mais amorosa para com eles, é precisamente a dos voluntários e das voluntárias, quais anjos de bata amarela (e de outras cores).
Segundo a peça a que aludi, a personalidade entrevistada afirmou que “o voluntariado não pode substituir postos de trabalho. E isso acontece, por vezes. Quando se fazem inspeções, verifica-se isso. Não nos compete fiscalizar, mas temos notícia que isso acontece. O voluntariado é para acrescentar, não é para ocupar o posto de trabalho de ninguém. "Há um grande risco e é preciso estar muito atento. Não somos nós que fazemos a fiscalização, é a Segurança Social, e é preciso que fique muito claro que um voluntário é um voluntário, não é um trabalhador da empresa”.
Na sua singularidade, informalidade mas com responsabilidade, competência e sentido do dever, aí estão os voluntários da saúde, sempre solícitos para atender às necessidades e carências reveladas, quais agentes do amor e da caridade fraterna.
Bem-hajam!

João António Pereira

"O VOLUNTARIADO

NÃO PODE SUBSTITUIR POSTOS DE TRABALHO"


Elza Chambel, presidente do Conselho para a Promoção do Voluntariado. "Passamos da caridadezinha para a cidadania", diz. Há mais de meio milhão de voluntários em Portugal.
Preside ao Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado desde 2006, Elza Chambel segura as pontas enquanto o novo organismo, instituído por lei, não é criado. Com a mesma garra e filosofia: ser voluntário é uma questão de cidadania, diz.


Em que fase de execução está o Plano Nacional do Voluntariado 2013-2015?
Atenção! Esse plano ainda não está em execução. Fundamentalmente, é uma boa ideia, mas prevê a criação de um grupo de trabalho, que ainda não foi designado, a criação de um novo conselho e a extinção de uma série de organismos, entre os quais, este conselho.

E esse grupo de trabalho, não foi criado porquê?
Não sei. Não faço parte do Governo. É uma boa ideia, transversal a todos os ministérios, mas não está ainda em funcionamento. O que eu disse ao ministro é que estaria aqui enquanto fosse necessário.

Mas este conselho está à beira de ser extinto....
Sim, à beira... Mas não se sabe quando. Para já, continuamos em pleno funcionamento. Disse ao sr. ministro que ficaria enquanto fosse necessário.

A crise aumentou o voluntariado?
Sim. Verifica-se que há um aumento de voluntários, mas talvez porque se fala mais de voluntariado. Desde o início que começamos a fazer divulgação, sobretudo, nas camadas jovens, com o slogan "ser voluntário é cool!". O Ano Internacional do voluntariado (2011) impulsionou muito o voluntariado. Temos cerca de 600 mil pessoas a desenvolver atividades de voluntariado. Estamos a evoluir da caridade para o voluntariado.

Há quem se aproveite desta circunstância de crise?
Há. O voluntariado não pode substituir postos de trabalho. E isso acontece, por vezes. Quando se fazem inspeções, verifica-se isso. Não nos compete fiscalizar, mas temos notícia que isso acontece. O voluntariado é para acrescentar, não é para ocupar o posto de trabalho de ninguém. "Há um grande risco e é preciso estar muito atento. Não somos nós que fazemos a fiscalização, é a Segurança Social, e é preciso que fique muito claro que um voluntário é um voluntário, não é um trabalhador da empresa.

O voluntariado jovem tem crescido?
Muito. Temos a campanha "Ser voluntário é cool" e muitas adesões.

E o que motiva os voluntários?
Sejamos pragmáticos. Há quem o faça porque atingiu a idade da reforma e ainda sente vontade de fazer coisas; e há quem o faça porque o voluntariado permite viajar e conhecer novas culturas, facilita contactos que poderão ajudar à entrada no mercado de trabalho. Tudo isso é bom!

O peso na economia deste trabalho voluntário está longe de ser apurado. Que dados lhe chegam?
Está por apurar, de facto. Há um estudo de 2008, da União Europeia e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que aponta para 1% do Produto Interno Bruto (PIB) português.

Cinco anos depois, esse valor estará desatualizado?
Espero bem que sim! Penso que será muito superior.

Que projetos chegaram aqui, ao conselho, que mais a sensibilizaram?
Muitos. Muitos, mesmo! O mysocialproject, o re-food, sei lá... a Ajudaris, no Porto. Muitos, mesmo! Há pouco tempo estive em Pern. Sabe onde é Pern? Não, não é Pernes, que Pernes é em Santarém, na minha terra. Pern é nos Montes Urais, a 1500 quilómetros da Rússia. Fomos convidados a apresentar lá os nossos projetos.

Clara Vasconcelos